quinta-feira, 15 de maio de 2014

A Barra do Rio





















Gente fina de meu Brasil varonil, aqui está uma coisa boa, que não se vê nesses dias tão obtusos que vivemos, trata-se do texto do meu amigo Rui Bittencourt que está na revista itajaiense, Atalaia. Rui fala da Barra do Rio, lugar onde ele passou sua infância, com uma linguagem rica em detalhes, que pouco se vê por aí e gostosa de se ler. Quanto a Atalaia, essa nos trás em sua quarta edição, matérias da maior importância para a cultura local, assim como, uma feliz e competente entrevista com o grande escritor e poeta, Ferreira Gullar.

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Barra do Rio

Por Rui Bittencourt

Ninguém me contou nada, meninos... eu vivi !   Foram anos e anos de manhãs douradas, de tardes longas e ensolaradas ou de noites gélidas, arrepiantes e enigmáticas...
Antes disso, houve o final de uma guerra. O fim da Segunda Guerra Mundial. Em cinco anos suas cinzas se desvaneceriam no extasiante réveillon do início dos anos 50. Esta guerra finda nos deixou um legado: um herói nativo.  Um herói da nossa barra do rio.  Um herói que inflamou o nosso orgulho pátrio e a nossa imaginação infantil.

Próximo, de carne e osso, de boina verde e de roupa cor caqui. Algumas vezes o víamos.  Para a alegria da gurizada, concedia-nos um passeio no seu jipe verde-oliva, desde a venda do Nena Dauer, seu irmão, até a sua casa.  Um surrado gibi da época mostrava, num quadrinho único, o desenho da cena em que o nosso herói-vizinho Arquimedes Dauer aparece em ação num dos ataques pela conquista de Monte Castelo, em dezembro de 1944, no norte da Itália. 

Um herói do sul dos Estados Unidos do Brasil. Um herói de Itajaí, de Santa Catarina.  Nosso elo de ligação com a história do mundo. Poucos anos depois ele foi morar com a sua família na praia de Armação de Itapocoroi e desapareceu para sempre no horizonte da nossa memória infantil. Valoroso expedicionário. Viveu eternamente dessa luta...

No nosso bairro havia um rio. Às vezes calmo às vezes traiçoeiro.  Era feito a uma grande serpente adormecida.  O rio Itajaí-Açu lanhava impiedosamente as pedras do plano alto catarinense e descia apressado até espraiar-se sinuoso na nossa planície litorânea, antes de desaguar saciado no oceano Atlântico.
Havia também uma balsa que unia diuturnamente, o sul ao norte e o lado norte ao nosso lado sul do país... Por ela passaram todos os contos e sonhos da nossa infância...

 Uma vez o nosso rio afogou um balseiro conhecido nosso, o Hélio.  Ele morou uns tempos na estalagem da minha mãe, a dona Belinha. Fomos ao seu velório numa sala dos fundos da casa do seu Nem da Balsa.  Vi uma vela acessa e não vimos nenhum familiar seu. Morreu sozinho. Foi a primeira vez que eu vi um morto de perto.
Desse rio bebemos a nossa saga.  Gerações antes (tomei consciência disso alguns anos depois nas aulas de Latim dos salesianos), um honorável amante da nossa terra criara um inspirado e visionário lema que dizia: "ex flumine magnitudo mea" ... do rio vem a minha grandeza.

Hoje sabemos disso mais convictamente. Por isso e muito mais, morro de orgulho do meu lugar. Da minha origem humilde, mansa e gentil. Do meu instinto ribeirinho. Da minha antiga Barra do Rio e por consequência da nossa pequena pátria, Itajaí.

Se isso não bastasse, a minha época histórica é também invejável. Nasci exatamente em 1950. Mais do que isso, sou nascido a 04 de julho.  Usufruo anualmente do meu "Independence Day" particular. Assim, além do meu lugar, vim de uma década efervescente e marcante.

Acontecimentos nacionais e internacionais não cansavam de varar a boca da barra, a balsa e o campo de aviação nos fundos da minha casa e nos atingir estupefatos. Como reagimos e assimilamos a tudo isso, de acordo com a nossa cultura e formação suburbana é o que procuraremos relatar daqui para frente... Contaremos uma parte. Outros a completarão.  Nesse cenário bucólico o nosso circo será armado...  vai,vai,vai,  começar a brincadeira... Alea jacta est!


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