Gente fina de meu Brasil varonil, aqui está uma coisa boa, que não se vê nesses dias tão obtusos que vivemos, trata-se do texto do meu amigo Rui Bittencourt que está na revista itajaiense, Atalaia. Rui fala da Barra do Rio, lugar onde ele passou sua infância, com uma linguagem rica em detalhes, que pouco se vê por aí e gostosa de se ler. Quanto a Atalaia, essa nos trás em sua quarta edição, matérias da maior importância para a cultura local, assim como, uma feliz e competente entrevista com o grande escritor e poeta, Ferreira Gullar.
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Barra do Rio
Por Rui Bittencourt
Ninguém me contou nada, meninos...
eu vivi ! Foram anos e anos de manhãs
douradas, de tardes longas e ensolaradas ou de noites gélidas, arrepiantes e
enigmáticas...
Antes disso, houve o final
de uma guerra. O fim da Segunda Guerra Mundial. Em cinco anos suas cinzas se
desvaneceriam no extasiante réveillon do início dos anos 50. Esta guerra finda
nos deixou um legado: um herói nativo.
Um herói da nossa barra do rio.
Um herói que inflamou o nosso orgulho pátrio e a nossa imaginação
infantil.
Próximo, de carne e osso,
de boina verde e de roupa cor caqui. Algumas vezes o víamos. Para a alegria da gurizada, concedia-nos um
passeio no seu jipe verde-oliva, desde a venda do Nena Dauer, seu irmão, até a
sua casa. Um surrado gibi da época
mostrava, num quadrinho único, o desenho da cena em que o nosso herói-vizinho Arquimedes
Dauer aparece em ação num dos ataques pela conquista de Monte Castelo, em
dezembro de 1944, no norte da Itália.
Um herói do sul dos Estados
Unidos do Brasil. Um herói de Itajaí, de Santa Catarina. Nosso elo de ligação com a história do mundo. Poucos
anos depois ele foi morar com a sua família na praia de Armação de Itapocoroi e
desapareceu para sempre no horizonte da nossa memória infantil. Valoroso
expedicionário. Viveu eternamente dessa luta...
No nosso bairro havia um
rio. Às vezes calmo às vezes traiçoeiro.
Era feito a uma grande serpente adormecida. O rio Itajaí-Açu lanhava impiedosamente as
pedras do plano alto catarinense e descia apressado até espraiar-se sinuoso na
nossa planície litorânea, antes de desaguar saciado no oceano Atlântico.
Havia também uma balsa
que unia diuturnamente, o sul ao norte e o lado norte ao nosso lado sul do país...
Por ela passaram todos os contos e sonhos da nossa infância...
Uma vez o nosso rio afogou um balseiro
conhecido nosso, o Hélio. Ele morou uns
tempos na estalagem da minha mãe, a dona Belinha. Fomos ao seu velório numa
sala dos fundos da casa do seu Nem da Balsa. Vi uma vela acessa e não vimos nenhum familiar
seu. Morreu sozinho. Foi a primeira vez que eu vi um morto de perto.
Desse rio bebemos a nossa
saga. Gerações antes (tomei consciência
disso alguns anos depois nas aulas de Latim dos salesianos), um honorável amante
da nossa terra criara um inspirado e visionário lema que dizia: "ex
flumine magnitudo mea" ... do rio vem a minha grandeza.
Hoje sabemos disso mais
convictamente. Por isso e muito mais, morro de orgulho do meu lugar. Da minha
origem humilde, mansa e gentil. Do meu instinto ribeirinho. Da minha antiga Barra
do Rio e por consequência da nossa pequena pátria, Itajaí.
Se isso não bastasse, a
minha época histórica é também invejável. Nasci exatamente em 1950. Mais do que
isso, sou nascido a 04 de julho. Usufruo
anualmente do meu "Independence Day" particular. Assim, além do meu
lugar, vim de uma década efervescente e marcante.
Acontecimentos nacionais
e internacionais não cansavam de varar a boca da barra, a balsa e o campo de
aviação nos fundos da minha casa e nos atingir estupefatos. Como reagimos e
assimilamos a tudo isso, de acordo com a nossa cultura e formação suburbana é o
que procuraremos relatar daqui para frente... Contaremos uma parte. Outros a
completarão. Nesse cenário bucólico o
nosso circo será armado... vai,vai,vai, começar a brincadeira... Alea jacta est!
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