domingo, 25 de janeiro de 2009

Ensaio sobre a cegueira sem dar muito na vista



ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA SEM DAR MUITO NA VISTA

Era uma tarde daquelas de Outono. As folhas das árvores que circundavam o parque se vestiam de tons de ferrugem. Duas mulheres caminhavam fazendo jogging, deixando marcadas de suor as cavas de suas camisetas. Um casal acabara de chegar e sentava-se na grama após estender sobre ela uma toalhinha quadriculada do tipo cantina italiana. Próximo dos carvalhos, três mulheres e dois homens de meia idade se movimentavam no ritmo do Tai Chi Chuan, como se a vida estivesse em extremo slow-motion. No céu azul, um jato 347 deixava uma tênue linha branca como se fosse uma pipa.

Alexander, jovem escritor e poeta, estava sentado num banco, dando milho aos pássaros. Alexander era cego. Seus óculos escuros de aro preto, com formato quadrado, design italiano dos anos 60, acomodavam-se bem no seu rosto oval. Alexander, em nenhum momento em suas ações, não demonstrava ter nenhuma deficiência visual. Sua bengala articulada de alumínio, único indicio que ele era cego, recostava-se na lateral do banco.

Enzo, um funcionário aposentado de uma companhia de seguros, chegou com um jornal embaixo do braço. Sentou-se na outra extremidade do banco onde estava Alexander. Enzo retirou os óculos de leitura do bolso interno da jaqueta de couro e abriu o jornal.

Alexander terminou de esvaziar o saco com milho. Amassou-o e jogou-o no cesto próximo ao banco onde estava sentado. Recostou-se e ficou como se observasse toda a paisagem ao redor. Ficou com um ar contemplativo, enquanto Enzo, na outra extremidade continuava com a sua leitura.

- A vida é muito interessante, não é? – inquiriu Alexander sem se virar para seu companheiro de banco.

Enzo deixou de lado o jornal para dar a atenção ao seu vizinho.

- Desculpe?...- disse Enzo, guardando os óculos de volta no bolso da jaqueta, como se já esperasse ter uma longa conversa pela frente.

- A vida é interessante, não é mesmo? – continuou Alexander, olhando na direção ao casal que se beijava deitado na grama. Perto, um poodle marrom tentava a todo o custo demonstrar suas habilidades acrobáticas com uma bolinha bicolor, porém ninguém o assistia. Quem sabe, o pequeno cão pensava que Alexander estivesse prestando atenção a sua performance...

- Oh, claro, claro que é. – confirmou Enzo, meneando a cabeça.

- O senhor acha mesmo isso? – perguntou Alexander.

- Sim, eu penso que a vida é interessante, sim. Por exemplo, o senhor aqui alimentando os pássaros. Eu admiro muito pessoas assim, que gostam da natureza... Tratam bem os animais... – disse com convicção Enzo.

Silêncio.

Enzo ficou também contemplativo e os dois passaram a olhar a paisagem. Já o cãozinho, sentou-se cansado, quem sabe chateado por ninguém o ter aplaudido. Assim, decidiu olhar o casal trocando carícias a poucos metros dele.

Foi quando Alexander quebrou o gelo:

- Meu querido pai sempre dizia: filho, coração não se compra na loja, mas em outro coração...

Enzo virou-se para Alexander e respondeu:

- Belo pensamento.

E Alexander continuou:

- Mas eu nunca entendi muito bem o que isso queria dizer...

- Verdade? – respondeu com surpresa Enzo.
Alexander seguiu falando...

- Sim... Mas meu irmão dizia que sabia o que significava.

- Mesmo? – disse Enzo mostrando-se mais interessado que antes.

Alexander continuou:

- Mas, por outro lado, minha mãe me recriminava por eu não entender o significado desse pensamento.

Enzo perecia tomado pelo assunto e perguntou:

- Você acha que ela gostava mais de seu irmão, não é?

Impávido, Alexander disse-lhe:

- Num sei. Não estou bem certo disso.

E Enzo não esperou e foi à carga novamente:

- Você acha que ele mentia? Dizia que sabia, mas na verdade não sabia?

Alexander, dessa vez, coçou a cabeça e respondeu:

- Acho que sim.

Enzo, que estava com as pernas cruzadas, descruzou-as e falou:

- O que o faz pensar que ele mentia?

Alexander retirou os óculos escuros, coçou o olho esquerdo e voltou a colocar os óculos antes de responder:

- Porque ele matou pessoas.

Enzo, tomado pela surpreendente revelação, exclamou:

- Meu Deus!

Alexander completou como se dissesse a coisa mais normal do mundo:

- Agora ele está na cadeia por isso. Pegou 50 anos.

Enzo tentou amenizar:

- Capaz de ele sair bem velhinho de lá, ou até nem sobreviva...

Alexander falou com o tom de quem estava sendo realista.

- Vai sair com 60 anos.

Enzo mostrava-se interessado como nunca e falou:

- Só?! Então, com quantos anos ele matou essas pessoas?

- 10 anos. - disse Alexander, como quem dá um “bom dia”.

Enzo se surpreendeu mais uma vez e exclamou:

- Meu Deus!

Alexander levantou-se, pegou sua bengala e disse:

- Bom, vou indo. Prazer.

Enzo nem esboçou surpresa ao ver que Alexander era cego, já que ele havia experimentado muitos momentos surpreendentes durante o diálogo com Alexander.

- Até. Prazer também. Olha, eu venho sempre aqui ler meu jornal. A gente se fala.

Alexander sorriu, e saiu.

Enzo antes de voltar à sua leitura, virou-se na direção de Alexander e disse...

- Ei, acho que você entendeu o que o seu pai quis dizer.

Alexander, que estava já a alguns metros do banco onde estava sentado, voltou-se e falou:

- Acho que entendi, mas foi por sua causa. Por causa da sua conversa comigo agora. Obrigado.

Enzo ainda aproveitou para lhe perguntar:

- Uma última coisa...

- O que? – falou Alexander.

Então, Enzo lhe perguntou:

- E os seus pais, o que pensam do seu irmão? -

Alexander, mais uma vez, retirou os ósculos escuros, coçou o olho esquerdo e respondeu:

- Eles não pensam nada. Meu irmão os matou.

Alexander colocou os óculos de volta no rosto e seguiu, agora, tateando à frente com sua bengala, bem ao estilo dos cegos.

8 comentários:

Paulo Henrique de Moura disse...

Lindo texto Hélio! Parabéns!
Então, precisamos combinar um dia de Baja com certeza!!!!!!!
Ps: O Vanderlei não conhecia, eu que o levei, rs.
Ele gostou muito. Podemos combinar de voltar!
Um abraço!

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Olá, Paulo Henrique! Valeu, pela visita, cara!

Vamos sim, vamos marcar um dia lá no Baja.

abração

Laura_Diz disse...

Rapaz, é bom teu texto.
Vc disse outro dia que lá na C. gostam de diálogos, este está com um diálogo ótimo. Escreve p lá ainda?
Bjs Laura

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Oi, Laura, merci, ma chérie!

Olha, acho que eles não estão mais recebendo contos, além disso, creio que eles só abrem espaço para os conhecidos ou indicados, assim como na Piauí. Mandei um para a Cronópios, estou esperando resposta deles. Ás vezes, eu penso que é melhor ser lido pelos amigos e desconhecidos que visitam o meu blog do que...deixa pra lá.

kisses

Alex Nascimento disse...

deus me livre
é lindo o texto
maravilhoso
adorei, surpriendente

abraço

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Alex, valeu, só que esqueci que o texto não era adequado para menores. rssss

abração

Unknown disse...

Belíssimo ensaio sobre a cegueira a la Helinho...:p
Agora vou pular pra menina q roubava livros...

bjs
Betita

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Oi, Betita, esses escritos são apenas coisas de quem não enxerga um palmo à frente do nariz! hahahah!

Valeu pela visita, nêga!

besitos