Pessoal, veja que interessante este artigo escrito pelo jornalista Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo, sábado passado dia 22 de março no Caderno de Sábado:
A traição brasileira dos intelectuais
jornalistas
A colaboração da mídia e dos profissionais
de imprensa foi decisiva para o Golpe de 1964
Por Juremir Machado da Silva
Correio do Povo – Caderno de Sábado – 22 de Março de 2014
A mídia, na época dizia-se imprensa, colaborou. Sem ela,
dificilmente haveria golpe em 1964. A “intelligentsia” com espaço nos jornais
atolou-se no Golpe de Estado por conservadorismo, ignorância, desinformação,
ideologia e erro de cálculo. Alguns, engajados ingênuos, imaginavam que podiam manipular
os militares para derrubar João Goulart e entregar o poder a Carlos Lacerda,
jornalista e governador Guanabara. Outros, afoitos sem engajamento, acreditaram
piamente que de um Golpe de Estado poderia nascer uma democracia mais profunda.
A intelectualidade jornalística sujou as mãos com tinta ideologizada, sangue da
repressão e mentiras.
A lista dos jornalistas e colaboradores colaboracionistas é
impressionante: Antônio Callado, que se tornaria um grande escritor e um
esquerdista perseguido pela ditadura, Carlos Heitor Cony, hoje na Academia
Brasileira de Letras, o primeiro, ainda em abril de 1964, a arrepender-se de
ter ajudado a escrever editoriais contra Jango para o Correio da Manhã, os
famosos e virulentos “Basta” e “Fora”, no poeta Carlos Drumont de Andrade,
autor de croniquetas pateticamente reacionárias, Alberto Dines, chefe de
redação do Jornal do Brasil, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux...
Quase todos os grandes jornais do epicentro do poder, Rio de
Janeiro e São Paulo, colaboraram na preparação da atmosfera necessária à
derrubada de João Goulart: Folha de São Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo,
Jornal do Brasil, O Dia, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Tribuna da
Imprensa... A periferia acompanhou o centro. Só a Última Hora resistiu. Por que
a imprensa queria derrubar Jango? Porque comprou pronta a ideia, disseminada
pela propaganda americana através de organizações montadas no Brasil, como o
Ipes e o Ibad, no âmbito da Guerra Fria, de que o Brasil estava prestes a ser
engolido pelo comunismo e de que Jango e o mal.
Carlos Lacerda envenenou uma geração com seu ideologismo
conservador exacerbado e seu partido político, a União Democrática Nacional,
embrião da Arena, braço político do regime militar. Um ex-ajudante de ordens de
Juscelino Kubitschek, em livro ainda não publicado, resumiu assim o espírito
udenista: “Não se pode aceitar a UDN como um simples partido. Nem todos os seus
integrantes são udenistas legítimos, bem como há muito espírito udenista
integrando outros partidos. Explico: a UDN deve ser encarada principalmente
como estado de espírito. Todo vendilhão da pátria falando em patriotismo; todo
desonesto falando em honestidade; todo amoral falando em moralidade; todo
ditador falando em democracia; todo mitificador falando sempre em verdade;
enfim, todo aquele que fala exatamente o contrário daquilo que está sentindo ou fazendo está devidamente
possuído pelo espírito udenista. Assim, meus caros leitores, quando um udenista
de boa estirpe falar em democracia, prepare seu lombo para apanhar. Se falar muito
em honestidade, trate de abotoar seus bolsos”.
Alberto Dines, hoje decano dos críticos de mídia, com seu
site Observatório da Imprensa, fez do Jornal do Brasil uma trincheira do
golpismo. A sua alegria com a derrubada de Jango foi tanta que organizou um
livro, “Os Idos de Março e a Queda em Abril”, publicado em 1964 mesmo, para
louvar a vitória do novo regime. Depois do AI-5, de 1968, e da censura aos
jornais, Dines descobriu-se crítico dos militares. Como paraninfo de uma turma
de Jornalismo, fez reparos à ordem ditatorial. O temível Serviço Nacional de
Informações (SNI), conforme documento localizado pelo pesquisador Álvaro Larangeira,
perdoou o seu deslize e deu-lhe um atestado de bons antecedentes: “ Sempre se
manifestou contrário ao regime comunista. Colaborou com o governo revolucionário
escrevendo livro sobre a revolução e orientou a feitura de cadernos para
difundir objetivos da revolução”. Apesar de seu desabafo sobre a censura, o IPM
(Inquérito Policial Militar) “não considerou crime” essa manifestação e passou
a borracha no caso: “Não será denunciado”. Dines era homem de confiança com
bons serviços prestados aos ditadores.
Como se reescreve a
história
A mídia não canta os homens e suas glórias, mas as
ideologias e suas razões. Os jornalistas e os jornais que apoiaram o Golpe de 1964
passaram, depois do AI-5 e da censura, a reescrever a própria história.
Inventaram-se um papel de resistentes e só falam dos poemas de Camões e das
receitas de bolo publicadas pelos jornais Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde
nos buracos dos textos censurados pelo regime militar. Não falam dos primeiros
tempos. Em 12 de abril de 1964, Júlio de Mesquita Filho, dono do Estadão,
publicou sem o menor pudor democrático, o “Roteiro da Revolução”, um plano que
ajudara a organizar em 1962 para derrubar João Goulart.
Em 1979, o trabalho de reconstrução do papel da imprensa na
história da derrubada de Jango ganhou um capítulo mitificador, o livro,
organizado por Thereza Cesário Alvim, “O Golpe de 19664: a imprensa disse não”.
Uma seleção de textos publicados depois do arrependimento. O historiador João
Amado rebateu prontamente: “A imprensa disse sim”. Um sim ditirâmbico.
Thereza Alvim escolheu mal os textos de Carlos Drummond de
Andrade. Ele se revela mais golpista do que resistente: “Não haverá mais jeito para
o Brasil? Mas no caso do sr. Goulart a verdade é que ele pediu, reclamou, impôs
sua própria deposição. Que fazer quando o servidor-presidente se torna inimigo
maior da tranquilidade? Esperar que ele liquide a ordem legal...? Melhor fazer
isso por ele. Essa leitura dos fatos feita por Drummond faz pensar que como
analista político ele era um grande poeta. Isso remete para uma comparação machista:
Jango seria a mulher de minissaia que provoca o estupro.
Antônio Callado aceitou o deprimente papel de crítico, não
dos defeitos intelectuais de Jango, mas do seu “defeito” físico, ao qual se
refere três vezes em poucas páginas: “ Ao que se sabe, muitos cirurgiões lhe
garantiram, através dos anos, que poderiam corrigir o defeito que tem na perna
esquerda. Mas o horror à ideia de dor física fez com que Jango jamais
considerasse a serio o conselho. Talvez por isso tenha cometido o seu suicídio indolor na Páscoa”. O Jango de
Callado é um bêbado incompetente, eterna estratégia desqualificadora ao alcance
da mídia: “Dia 13 de março deste ano, incapaz de suportar por mais tempo o
desnível entre o que era e o que devia ser, Jango-Hamlet saiu para o comício.
Tomara uma refeição ligeira de manhã, na base do chimarrão, e depois, durante
todo o dia, não comeu mais nada. Tinha bebido muita limonada e em seguida
uísque (nos dois últimos governos da República esse personagem escocês
desempenhou papel macbethiano)”. A maledicência como estilo. Callado condenou
Jango por um vício ainda maior: o de aumentar o salário mínimo. Começou na base
dos 100%.
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