Coisas das Esfinges
Por Cecília Meireles
Viver não é fácil,
mas andar pelas ruas desta minha amada cidade é muito mais difícil. Primeiro
porque os tufões que têm passado por aqui se empenharam particularmente em
revolver o calçamento; depois, porque os automóveis têm aumentado de maneira
considerável e, em matéria de trânsito, a
tendência é caminharem os pedestres pelo meio da rua e trafegarem os
automóveis pelas calçadas.
Mas, enfim, a cidade
é tão bonita – sobretudo agora com as amendoeiras a perderem as folhas
vermelhas e amarelas - que muita coisa
se perdoa aos automóveis e aos tufões.
Acontece, porém que
os habitantes desta cidade (e nem todos são crianças) se distinguem por uma
invencível amabilidade, um desejo de comunicação difícil de explicar nestes
tempos de pressa e indiferença. Quando menos se espera, alguém para diante de
nós, e pergunta com evidente satisfação pela charada que nos vai propor:
- A senhora não é
Dona Fulana?
- Claro que sou.
- E eu? Lembra-se de
mim? Sabe o meu nome?
Eis-nos em pleno
deserto, diante da Esfinge. Começa-se a recordar: um cavalheiro assim, desta
altura, com esta voz, de óculos, traje azul-marinho, aliança no dedo, gravata
de pintinhas... (Mas todos os cavalheiros podem ter gravatas de pintinhas,
traje azul-marinho, óculos, e há muitos cidadãos desta altura e até de aliança
no dedo...)
- Pense um pouco, diz
a Esfinge cruel.
Pensemos.
- Conheço-a desde o
tempo de estudante, quando caminhava como quem pisa violetas... ( Bem, deve ser
um poeta: percorramos depressa o fichário dos poetas.... Mas é impossível: não
somos todos poetas no Brasil?)
A Esfinge diverte-se;
aliás, com uma ponderação, uma cortesia, uma finura que assentam bem numa
Esfinge.
- O senhor (murmura o
suplente de Édipo), o senhor deve ser um famoso orador, um grande mestre, um
deputado, um catedrático...
- Ah! Como as
mulheres esquecem... A senhora não se lembra de mim; e eu acompanho toda a sua
vida, leio todos os seus livros, sei das suas viagens, das suas conferências
(nem sempre compareço, é verdade, mas tenho notícias...) A senhora fixou apenas
que sou uma criatura verbosa, retórica... Pois vou ajudá-la...
E então, como se
subíssemos para um tapete mágico, principiamos a viajar no tempo. Histórias e
histórias se sucedem, jamais completamente verídicas, porém muito mais belas,
por imaginárias e transcendentes. E nós por aqui e por ali, pisando violetas,
colhendo estrelas, batendo asas, derramando neste mundo cornucópias de
sonhos...
É preciso que um
automóvel suba a calçada para descermos desse arrebatamento. E quase sempre a
Esfinge parte sem nos dizer seu nome, deixando-nos apenas a sensação do irreal
que somos, neste mundo de sonhos e
memórias...
(extraído do livro de
crônica “Ilusões do Mundo” – Nova Fronteira – 2ª edição – 1982)
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