segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Aniversário de Borges


Se vivo fosse, Jorge Luís Borges estaria complentando hoje, dia 24 de Agosto de 2009, 110 aninhos. Aqui está um trecho de "Evaristo Carriego" obra sua de 1930.

(...) No poente, ficava a pobreza gringa do bairro, sua nudez. O termo las orillas ajusta-se com sobrenatural precisão a esses pontais escassos, em que a terra assume a indeterminação do mar e parece digna de ilustrar a insinuação de Shakespeare: "A terra tem borbulhas, como as tem a água".
No poente, havia becos empoeirados que se iam empobrecendo pela tarde afora; havia lugares em que um galpão da estrada de ferro ou um vazio com pitas, ou uma brisa quase confidencial, inaugurava mal e mal o pampa. Ou, então, uma dessas casas baixo-tas sem reboco, de janela baixa, com grade – às vezes com uma amarela esteira atrás, com figuras – que a solidão de Buenos Aires parece criar, sem participação humana visível. Depois: o Maldonado, ressequido e amarelo leito, estirando-se sem destino desde La Chacarita e que, por milagre espantoso, passava de morto de sede às desmedidas extensões de água violenta, que carregavam furtivamente a rancharia moribunda das margens. Há uns cinqüenta anos, depois desse irregular leito ou morte, começava o céu: um céu de relinchos e crinas e pasto doce, um céu cavalar, os happy hunting-grounds preguiçosos das cavalhadas eméritas da polícia. Para o lado do Maldonado, tornava-se escassa a gentalha nativa, substituída pelo calabrês, gente com quem ninguém queria meter-se, pela perigosa boa lembrança de seu rancor, por suas punhaladas traiçoeiras iniludíveis. Aí Palermo entristecia, pois os trilhos de ferro do Pacífico bordejavam o arroio, descarregando essa peculiar tristeza das coisas escravizadas e grandes, das barreiras altas como varal de carroça em descanso, dos verticais terrenos aplainados e das plataformas. Uma fronteira de fumaça trabalhadora, uma fronteira de vagões rudes em movimento fechava esse lado; atrás, crescia ou emperrava o arroio. Estão encarcerando-o agora: esse quase infinito flanco de solidão que até bem pouco se acavernava, atrás da casa de doces e de truco La Paloma, será substituído por uma rua atrevida, de telhas do tipo inglês. Do Maldonado, não restará senão nossa lembrança, elevada e solitária, e a melhor tragicomédia popular argentina, e os dois tangos que se chamam assim – um primitivo, atualidade que não se preocupa, mera marcação da dança, ocasião de arriscar-se nos requebros; outro, um doloroso tangocanção, ao estilo da Boca – e algum clichê apoucado que não facilitará o essencial, a impressão de espaço, e uma equivocada outra vida, na imaginação dos que não o viveram. Ao imaginá-lo, não creio que o Maldonado fosse diferente de outros locais muito pobres, mas a idéia de sua gentalha, excedendo-se em esfarrapados bordéis, à sombra da inundação e do fim, imperava na imaginação popular. Assim, na hábil tragicomédia local que mencionei, o arroio não é um gasto pano de fundo: é uma presença muito mais importante do que o mulato Nava e que a china Dominga e que o Títere. (A ponte Alsina, com seu ainda não cicatrizado passado pendenciador e sua memória da grande ação patriótica dos oitenta, desbancou-o na mitologia de Buenos Aires. No que se refere à realidade, é fácil observar que os bairros mais pobres costumam ser os mais rebaixados e que neles floresce uma assustada decência.) Do lado do arroio, zarpavam as tormentas altas de terra que toldavam o dia, e o ataque de ar do pampeiro, golpeando todas as portas voltadas para o sul e que deixavam no vestíbulo uma flor de cardo, e a arrasadora nuvem de gafanhotos, que as pessoas tentavam espantar aos gritos,3 e a solidão e a chuva. Gosto de pó tinha esse bairro.
Na direção da água traiçoeira do rio, próximo ao bosque, o bairro tornava-se cruel. A primeira construção desse pontal foi a dos matadouros do Norte, que ocuparam umas dezoito quadras, entre as futuras ruas Anchorena, Las Heras, Áustria e Beruti, e agora sem mais vestígio verbal que o nome La Tablada, que ouvi de um carroceiro, ignorante de sua antiga justificativa. Tenho induzido o leitor a imaginar esse dilatado recinto de muitas quadras, e embora os currais tenham desaparecido nos setenta, a figura é típica do lugar, atravessado sempre por propriedades – o cemitério, o hospital Rivadávia, o presídio, o mercado, o barracão municipal, o atual lanifício, a cervejaria, a chácara de Hale –, com a pobreza de surrados destinos ao redor. Essa chácara era por duas razões mencionada: pelos pereirais que a garotada do bairro saqueava com clandestinos ataques e pela aparição que visitava os lados da rua Agüero, reclinada na haste de um lampião a cabeça impossível. Porque, aos verdadeiros perigos de um compadrio de facão e soberba, tinha-se que acrescentar os fantásticos de uma mitologia foragida; a viúva e o estapafúrdio porco de lata, sórdidos como o baixo mundo, foram as mais temidas criaturas dessa religião de escória. Antes tinha sido uma queimada esse norte: é natural que gravitassem em seus ares lixos de almas. Restam esquinas pobres que se não desabam é porque as sustentam ainda os compadritos mortos.
Descendo pela rua de Chavango (depois Las Heras), o último botequim do caminho era La Primem Luz, nome que, apesar de aludir a seus madrugadores hábitos, deixa impressão – correta – de cegas ruas, atascadas, sem ninguém, e por fim, nas cansadas curvas, uma humana luz de armazém. Entre os fundos do cemitério avermelhado do Norte e os da Penitenciária, ia-se levantando do pó um subúrbio achatado e despedaçado, sem rebocar: sua notória denominação, a Terra do Fogo. Escombros dos primórdios, esquinas de agressividade ou de solidão, homens furtivos que
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3 Destruí-los era coisa de hereges, porque levavam o sinal da cruz: marca de sua emissão e repartição
especiais por parte do Senhor.


se chamam assobiando e que se dispersam de repente na noite lateral dos becos, designavam seu caráter. O bairro era uma esquina final. Uma corja a cavalo, corja de sombreiro pontudo como mitra sobre os olhos e com a acaipirada bombacha, sustentava por inércia ou por impulso uma guerra de
duelos individuais com a polícia. A lâmina do valentão suburbano, sem ser tão longa – era luxo de corajosos usá-la curta –, era de melhor tempera que a do sabre adquirido pelo Estado, vale dizer, com predileção pelo custo mais alto e pelo pior material. Era manejada por um braço com mais vontade
de derrubar, melhor conhecedor dos rumos instantâneos do entrevero. Só pela virtude da rima, sobreviveu ao desgaste de quarenta anos um instante desse impulso:
Fique longe, eu lhe rogo,
que sou da Terra do Jogo.4
Não só de lutas; essa fronteira era feita de guitarras também. Escrevo esses recuperados fatos, e me atrai com aparente arbitrariedade o agradecido verso de Home-thoughts: "Here and here did England help me", que Browning escreveu pensando em uma abnegação sobre o mar e no alto navio torneado como um bispo do xadrez em que Nelson caiu, e que repetido por mim – traduzido também o nome da pátria, pois para Browning não era menos próximo o de sua Inglaterra – serve-me como símbolo de noites solitárias, de caminhadas extasiadas e eternas pela infinitude dos bairros. Porque Buenos Aires é profunda, e nunca, na desilusão ou no penar, abandonei-me a suas ruas sem receber inesperado consolo, seja por sentir irrealidade, seja pelas guitarras ao fundo de um pátio, seja pelo roçar de vidas. "Here and here did England help me", aqui e aqui veio me ajudar Buenos Aires. Essa razão é uma das razões por que resolvi compor este primeiro capítulo. (...)
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2 comentários:

ITAJAHYSTORIAS disse...

alohelo helio...

ve ali ole ola

http://nuarfozdoitajai.blogspot.com/

e lá tambem...

http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/jodorowsky/ocho.htm

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Rafa, os dois links já estão colados aqui no blog.
Valeu, cara!