segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Voltando no tempo

 





























APENAS UM NOME

por Hélio Jorge Cordeiro

José chegou ao pequenino cartório de Nazaré, acompanhado de sua mulher e de seu filhinho de colo. Deixou-os esperando do lado de fora e entrou.

Foi chegando e foi dando bom dia. Primeiro para um senhor septuagenário que mascava um pedaço de fumo logo na entrada do cartório. Mas antes de retribuir o cumprimento, o velho deu uma cusparada marrom na direção da rua de barro. O cuspe atingiu o solo, levantando uma diminuta nuvem de pó. Em seguida, a meleca gosmenta do tabaco formou uma bola e esta rolou como se fosse neve, indo em direção a uma das patas traseiras de um jegue que estava à espera de seu dono. O animalzinho deu um pinote quando a bola de argila com cobertura de tabaco lhe tocou a pata, derrubando toda a carga. O velhote começou a rir.

José ficou pasmo com o que acabara de ver, contudo, o inusitado, não iria tomar o lugar daquilo que era o seu real objetivo ali no cartório: fazer a certidão de nascimento de seu primeiro filho.

Finalmente, José chegou ao ensebado e gasto balcão de madeira, parte importante do mobiliário do tabelionato:

- Bom dia! – disse José, se dirigindo a um homem que parecia ter sua idade. O sujeito, sem olhar pra ele, balbuciou algo que parecia ser um bom dia de trás pra frente.

- Eu vim tirar a certidão de nascimento de meu filho.

O moço, simplesmente, esticou o braço e entregou-lhe um pequeno papel.

José olhou-o e logo devolveu pro homem.

- Não sei ler. - disse.

Foi então que o homem se levantou muito a contra gosto e foi até o balcão, ficando cara a cara com José. Debruçou-se, cruzando os braços como se tivesse percorrido dezenas e dezenas de quilômetros a pé e o cansaço houvesse tomado conta de seu corpo.

- Então o senhor assenta o polegar aqui. – disse o sujeito, preguiçosamente.

- Primeiro quero saber o que está escrito nesse papel. – falou sério, José.

- Isso é um recibo dizendo que o senhor tem que pagar uma pequena taxa pela certidão. - disse o homem, bruscamente.

- Mas primeiro quero ver a certidão pronta. – retrucou no mesmo tom, José.

O homem olhou-o, viu que José não era muito fácil de convencer e falou:

- Está bem. Vou pegar o livro. Um momento. – respondeu e saiu fazendo muxoxos.

O homem foi até sua mesa e pegou um livro grande, tão antigo quanto a soma dos anos do velhote cuspidor, de José e do homem do cartório juntos.

Ele voltou e começou o questionário: nome do pai, da mãe, dos avós maternos, paternos, do filho e, se deixasse, até do espírito santo.

Quando José lhe disse o nome que tinha escolhido para o filho, o homem fechou o livrão quase esmagando a mão de José.

- Não. Não posso! Exclamou com uma determinação que nem parecia a mesma pessoa de minutos atrás.

- Por quê? – indagou José, surpreso.

- Porque não posso. Isso não é nome que se dê a um filho.

- Mas o filho é meu! – falou José, com indignação.

- Não sou autorizado a fazer isso! – falou o homem quase deixando o balcão.

José olhou pra ele e o chamou como se fosse lhe confidenciar alguma coisa:

O sujeito chegou bem perto e foi todo ouvidos:

- Olhe, meu senhor...

- Herodes...

- Olhe, Herodes, eu vim de longe, léguas daqui, homi. Num posso voltar sem dar um nome pro meu filho.

- Eu sei, eu sei, mas...

- Num tem mas, meu senhor...

- Herodes...

- Tá, Herodes. Olhe, seu Herodes, quanto custa a certidão?

Herodes olhou pro lados e falou em voz baixa:

- A certidão não custa, o que custa é a taxa de serviço, entendeu? São 10.

- Ah, sei... – disse José já enfiando a mão dentro do paletó de linho mais enrugado que pele de tapuru residente em goiaba madura, deixando à mostra um baita de um 32.

Herodes esbugalhou os olhos ao ver a arma. José retirou um maço de dinheiro. Pegou duas notas de 5 e as entregou para Herodes. Em seguida, pegou mais umas notas que ele contou em voz alta ao pé das orelhas do funcionário do cartório:

- 5, 10, 20, 25, 30! – conferiu folheando, outra vez as notas encardidas e disse:

- Taqui, seu Herodes, 30! É três vezes o valor das... ta-xas! – disse com um pouco de ironia e continuou:

- Isso é pra você comprar um corte de fazenda, bem bonito... Um presente meu, de minha patroa e de meu filho.

- Ma... ma...mas...- gaguejou Herodes, olhando pros lados e depois falou:

- Tá, tá bem. Num sei por que estou fazendo isso...- lamentou-se, fazendo cara de vitima e lembrou-se:

- Ah, vai ser preciso os padrinhos.

- Padrinhos?!

- Está, bem. Pode deixar. Seu Caifaz! – gritou na direção da rua.

Não demorou o velhote cuspidor apareceu e foi ter com eles no balcão.

José guardou o molho de notas de volta e ficou com os 30 nas mãos.

Herodes pegou o livrão e começou a escrever os nomes dos pais do menino, dos avós maternos e paternos, de seu Caifaz e o dele como padrinhos e, finalmente, escreveu o nome do menino.

José, finalmente, deu os 30 para Herodes, que os pegou muito discretamente, como se já não tivesse feito isso dezenas de vezes.

Depois de tudo preenchido e colocados os devidos carimbos, Herodes deu o papel pra José, que o guardou no bolso do paletó e foi embora satisfeito.

Caifaz aproximou-se e perguntou:

- Herodes, como é mesmo nome do nosso afilhado?

- Jesus. – pronunciou Herodes, com certo desdém.

- Minha nossa! - exclamou o velhote, dando uma cusparada marrom, recheada de fumo de rolo na direção da porta da rua e concluiu:

- Isso num vai acabar bem!

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