sexta-feira, 1 de março de 2013

Ora, pois, pois!



















No 25 de Abril de 74, tinha eu ido, como fazia de vez em quando, ao Bar Riviera, aquele que existia lá na Consolação com a Paulista, em frente aos ex- cines Belas Artes. Eu, naquela época, trabalhava numa produtora de filmes comerciais na Rua Silvia e quando terminava o expediente ia beber umas "bramas" e tomar uma sopinha de cebola no velho bar. Lá pras tantas, começou um burburinho. E, sem mais nem menos, enquanto eu lia o meu Pasquim, recebo um esfuziante abraço e a frase com sotaque lusitano: "A ditadura caiu, pá!" Eu pensei que tinha sido a nossa, mas percebi que não era, quando toda a gente começou a cantar "Grândola Vila Morena" (Zeca Afonso). Foi assim que experimentei a derrubada do Salazarismo, no saudoso Bar Riviera que deveria ter sido tombado! Agora aproveitem o texto ( é longo, mas vale a pena) aqui abaixo que tomei emprestado do blog de Luís Nassif, sobre aquele evento tão marcante na história política e social de Portugal:





Enviado por luisnassif, qui, 28/02/2013 - 13:47

Por Marcia

Do Histo é blog



E a Bruna (3B2/5) está de volta. Desta vez ela escreveu sobre a Revolução dos Cravos, o movimento militar que colocou fim a 42 anos de ditadura salazarista em Portugal e sua repercussão junto à ditadura brasileira.
“Passava da meia noite quando ’Grândola, Vila Morena’ ecoou pelos rádios lusitanos. A música, proibida pela ditadura, era um sinal para o início da revolução, da qual depois virou um hino. Era 25 de abril de 1974 quando os militares chegaram a Praça do Comércio, onde ficavam os ministérios. Sem resistência, em poucas horas caiu a ditadura de Salazar, comandada por Marcello Caetano, seu sucessor.
Não se sabe bem a razão, mas todos os soldados portavam cravos em suas espingardas. Alguns dizem que uma florista, que iria fazer uma entrega em um hotel, encontrou um militar, a quem deu o cravo. Seus companheiros do pelotão rapidamente o imitaram, e a flor tornou-se símbolo do 25 de Abril.
No Brasil, a Revolução dos Cravos serviu para estimular a oposição à ditadura. Portugal, a antiga metrópole, que antes era um símbolo de conservadorismo, tornou-se um exemplo a ser seguido pelo nosso povo. Chico Buarque escreveu, em 1975, a música ‘Tanto Mar’, que em seus versos (obviamente censurados) diz: ‘Lá faz primavera, pá/ cá estou doente/ manda urgentemente/ algum cheirinho de alecrim’.
O que mais surpreende, talvez, é a posição do governo brasileiro: dois dias após a queda do Estado Novo, foi o primeiro país a reconhecer o novo governo português, que se aproximava do bloco soviético. Também serviu de mediador entre as colônias e os lusos, para facilitar o processo de independência, além de oferecer asilo a Caetano.
A postura contraditória do nosso país pode ser em parte justificada pelo antiamericanismo do então presidente Geisel e, por outro lado, explicada pelo interesse de o Brasil se tornar o ‘herdeiro natural’ das colônias africanas, como disse o embaixador brasileiro em Angola Álvaro Lins. Os portugueses, afinal, não estavam ‘orgulhosamente sós’: contra todas as chances, puderam contar com o apoio brasileiro.”
Do Macroscopio
Por Vasco Pulido Valente
NO CARMO 1. Na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, Marcelo Caetano recebeu em casa, e na cama, um telefonema do major Silva Pais, director da PIDE, para lhe dizer que a "revolução estava na rua" e era "grave". Silva Pais aconselhou Marcelo a ir para o Quartel do Carmo, porque no "16 de Março" já tinha ido para Monsanto e era natural que, sabendo disso, os "rebeldes" o tentassem apanhar lá com um "golpe de mão". Além disso, Silva Pais não apurara ainda o "lado" da Força Aérea e considerava a Guarda Republicana "fixe". Marcelo Caetano não achou estranha esta exibição de ignorância e de amadorismo. Não havia, disse ele, "tempo para pensar e discutir". E foi assim, à pressa, sem um plano e um propósito, que se meteu na "ratoeira do Carmo". Depois de falar com o ministro da Defesa, o professor de Direito Silva Cunha, que lhe confirmou em grosso o estado das coisas, seguiu sozinho de automóvel para a Baixa (morava em Alvalade) com um adjunto militar meramente cerimonial. Na Baixa, passou por várias patrulhas que guardavam o acesso das ruas. Julgou que se tratava de tropas fiéis. Não eram, eram tropas do MFA, que, por sorte ou desleixo, não o mandaram parar.
Pretendeu mais tarde que não vira o Carmo como um "refúgio", mas como um sítio seguro de onde podia acompanhar e dirigir a resistência, ou seja, como um quartel-general. Não se percebe bem a lógica desta ideia. Fisicamente isolado do comando militar, da PIDE e do governo, com comunicações precárias que o MFA com certeza vigiava (ou que, pelo menos, se devia presumir que vigiasse), a presença de Marcelo no Carmo não servia para nada. Pelo contrário, dava um objectivo fácil e decisivo às forças sublevadas. As justificações do exílio não convencem. Tanto mais que o Quartel do Carmo, com uma única companhia de comando e serviços, várias "repartições" de carácter administrativo e dezenas de famílias de gente da GNR que lá vivia permanentemente, hesitaria sempre em se imiscuir em qualquer espécie de violência.
Recebido "cortesmente" por um general à paisana, Marcelo assistiu inerte à passividade da GNR, enquanto o MFA tomava conta de Lisboa e o povo vinha espontaneamente para a rua. Chamou o ministro do Interior, César Moreira Baptista. Pediu pateticamente à Legião que combatesse. Tentou encontrar, e não encontrou, o Presidente da República. E, no fim, quando milhares de manifestantes se juntaram no Largo do Carmo concebeu mesmo o plano de os massacrar, fazendo descer uma unidade da GNR da Pedro V e subir outra do Camões para os "colher entre dois fogos". Lisboa inteira ouviu, em aberto, pela rádio os comandantes da GNR decidirem desobedecer a essa ordem criminosa. Curiosamente, Marcelo continuava no Brasil orgulhoso com a matança inútil que tentara perpetrar, muito indignado com o recuo da Guarda e sem a mais vaga consciência de que escapara por pouco à condenação e infâmia universal.
No Carmo, naturalmente, a guarnição e as famílias só queriam que ele desaparecesse depressa, sobretudo depois de uma rajada de metralhadora, completamente inócua, sobre a parede do quartel. As senhoras corriam aflitas pelos corredores. Com a extraordinária desvergonha indígena, o chefe do Estado-Maior da GNR acusou Presidente do Conselho de pôr em risco a população do "edifício". E um major, que se anunciou "delegado do MFA", preveniu que ele ia "desencadear um tragédia". Marcelo resolveu sair de cena com "um tiro na cabeça", para os "díscolos" do Largo do Carmo não o "apanharem vivo". Mas não saiu.
O secretário de Estado da Informação, que observava no Grémio Literário a agonia do regime, pediu ao chefe de gabinete, Pedro Feytor Pinto, para persuadir Marcelo a negociar com Spínola, o putativo chefe do pronunciamento. Feytor Pinto conseguiu sem dificuldade a concordância de Marcelo. A seguir a uma complicada troca de recados, Marcelo telefonou pessoalmente a Spínola e apresentou a rendição do regime, para o poder "não cair na rua". Spínola, com a autorização do comando do Movimento, que "escutara" a conversa, partiu para o Carmo.
Entretanto, no Carmo, Salgueiro Maia parlamentava com o general comandante da GNR. Informado, Marcelo desconfiou que a GNR se preparava para o abandonar "ingloriamente" ao MFA (e ao povo), uma hipótese que o horrorizava para lá de tudo, e, como presidente do Conselho, exigiu conduzir ele próprio as conversações. Não se enganava. Salgueiro Maia apresentou um ultimato: ou ele, Marcelo, se constituía imediatamente prisioneiro do MFA ou o MFA "arrasava o quartel a tiros de canhão". Marcelo não se impressionou. Com a pose de autoridade que nunca lhe falhava, interrogou Salgueiro Maia, sem qualquer resultado, sobre a chefia do Movimento. No fim, Salgueiro Maia repetiu o ultimato: "arrasava o quartel". "Não arrasa coisa nenhuma", respondeu Marcelo. E comunicou ao capitão que pedira a Spínola para ir ao Carmo e que dentro de meia hora lhe tencionava "transmitir o poder". O capitão que fosse "acalmar" a "populaça" e que "aguardasse". Com uma "continência correcta", Salgueiro Maia obedeceu. Logo a seguir, no meio de grande entusiasmo, Spínola entrou no quartel e encontrou o presidente do Conselho sentado num sofá, numa "atitude serena e digna". Na sala ao lado, César Moreira Baptista e Rui Patrício pareceriam "desmoralizados". Segundo Marcelo, antes mesmo de o cumprimentar, Spínola desabafou: "A que estado estes gajos [o MFA] deixaram chegar isto!" "Isto" era a multidão do Carmo e o povo na rua. Num livro de memórias (de 1978), Spínola transformou esta frase de general de cavalaria numa declaração histórica: "O estado em que Vossa Excelência me entrega o país." E acrescentou: "É tarde para Vossa Excelência reconhecer a razão que me assistia." Esta pequena diferença, acrimoniosamente discutida no futuro, escondia uma querela maior. Marcelo queria demonstrar a inconsciência de Spínola e a fraca autoridade que ele tinha sobre o MFA. Spínola queria passar a Marcelo a culpa da queda do regime e do desastre de África. De qualquer maneira, no Carmo, Marcelo cortou os devaneios de Spínola. Não era altura de "recriminações". Metido numa "viatura blindada", com Moreira Baptista e Rui Patrício, seguiu para a Pontinha sob os "vitupérios" da multidão.
Este melodrama obscureceu um ponto essencial, que, em 1977 e para profunda fúria de Marcelo, Silva Cunha (o antigo ministro da Defesa) levantou num livro sobre o "ultramar" (O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril). Com os militares na rua, o sistema constitucional do regime, que o prof. Caetano ensinava na universidade, doutamente comentava e afectava respeitar, ruíra num minuto e, pior ainda, tinha sido ele o primeiro, e o único, a reduzir a lei ao seu arbítrio. Sozinho, sem consulta ao Presidente da República, ao Conselho de Estado ou sequer ao Governo (para não falar na Assembleia Nacional), decidira "transmitir" o poder a Spínola. Nada na Constituição o autorizava a isso. Pelo contrário, a concorrência do Presidente da República era indispensável. Nem as circunstâncias permitiam que o Presidente do Conselho sem ouvir ninguém dissolvesse o regime, como efectivamente dissolveu, e até certo ponto legitimasse a sucessão de um general em revolta. Marcelo alegou que não conseguira falar com o Presidente ou reunir o Governo. Mas factos não pesavam contra princípios. Não tardou que à crítica genérica à política colonial e doméstica dos seus cinco anos, se juntasse a acusação de "fraqueza" ou "medo" e a ideia absurda de que ele fora pessoalmente responsável pela derrocada de Abril. No exílio, e vindas de quem vinham, estas torpezas doeram.
Principalmente, porque Marcelo, incapaz de aceitar a ficção constitucional do regime, se recusava a ver que o edifício para que ele tanto trabalhara e em que tanto se distinguira assentava na realidade crua do poder de um homem, o poder de Salazar e o dele. No Brasil, insistia em visitar Tomás cerimonialmente, como Chefe de Estado no exílio. E não compreendeu o azedume e má-fé dos comparsas daquele melodrama: dos militares, dos ministros, da imensa trupe que se encomendara ao ditador e que o ditador levara à perdição. EM TRÂNSITO 2. Da Pontinha levaram Marcelo para o aeroporto da Base 1 de Força Aérea, sob escolta de um sargento pára-quedista. Durante a viagem pensou que um "gesto equívoco" da parte dele bastaria para ser "abatido". No avião para o Funchal encontrou Tomás, Moreira Baptista e Silva e Cunha e a escolta aumentou para oito homens, que também um sargento comandava. Este arranjo para acompanhar um almirante da Armada no activo, um antigo Presidente do Conselho e dois ministros da véspera indignou Marcelo como um insulto protocolar e uma ingratidão da pátria. Portugal desprezava " o esforço, a dedicação, o sacrifício para o servir"! Não lhe ocorreu por um momento que existiam opiniões diferentes sobre "a valia" do que fizera. Nas centenas de páginas que escreveu depois do "25 de Abril" não admitiu um erro. Excepto, evidentemente, por excesso de generosidade e ou de confiança.
Ao começo, os dignitários da ditadura, em simples regime de residência fixa, andavam à vontade pelo Funchal. A mulher e a filha de Tomás, a mulher de Moreira Baptista e a mulher de Silva Cunha foram ter com eles. Mas depressa, perante a "indignação de Lisboa", o novo governador militar, o tenente-coronel Azeredo, proibiu que saíssem de casa e recebessem visitas. Manifestações apareciam regularmente para os vaiar. Azeredo, mais tarde adjunto de Sá Carneiro e Soares, insistia em se mostrar "frio, hostil e desagradável". Isto perturbou o grupo, com excepção de Marcelo. Desde o primeiro dia, começou a escrever a sua justificação histórica (publicada ainda em 1974, no Brasil, com o título de Depoimento). O livro (dedicado a Moreira Baptista, a Silva Cunha, ao general Andrade e Silva e a Elmano Alves, chefe da Acção Nacional Popular, o partido do Governo) é um livro curioso. Embora deslize aqui e ali (sobretudo quanto ao papel da censura e da PIDE e à sua pretensa "honestidade" eleitoral) para uma versão deliberadamente falsa, o Depoimento tenta evitar o ressentimento e o tom apocalíptico do vencido, examinar os problemas do país de 1968 a 1974 e apresentar uma obra política com sobriedade. Nem sempre consegue, mas, na essência, a cabeça arrumada e a herança académica de Marcelo acabam por prevalecer. Lida hoje, esta apologia de Marcelo por ele mesmo, não deixa de impressionar pela consciência do beco sem saída em que se metera e pelo cuidado de não agravar (e até de melhorar) a situação desesperada do país. Claro que nunca lhe ocorreu que o futuro estivesse na expeditiva queda do regime. O regime, afinal, era ele.
Entretanto, Spínola, presumivelmente com a aprovação do MFA, negociava a transferência de Marcelo e de Tomás para o Brasil. Houve quem insinuasse que se tratava de um tratamento de favor. Silva Cunha, que ficou para trás com Moreira Baptista e passou uns meses na Trafaria, levanta obliquamente a dúvida. O próprio Marcelo, já no Brasil, agradeceu a Spínola o relativo privilégio do exílio, longe do PREC e da "festa" da esquerda. Nem Silva Cunha, nem Marcelo perceberam Spínola. Aferrolhados numa cadeia qualquer, a insignificância de Silva Cunha e Moreira Baptista não excitava ninguém em Portugal. Mas na Madeira, em Lisboa ou na Trafaria, Marcelo e Tomás seriam uma provocação constante.
Nenhuma das forças dominantes depois de Abril, e principalmente os militares, queria julgar Marcelo perante a Europa inteira. Lavar a roupa suja da guerra de África e, pior ainda, da "descolonização" que se preparava não convinha a ninguém. Toda a gente preferia não ver e não ouvir e esquecer depressa. Como preferia não falar na colaboração com o antigo regime, que ia de Spínola e do MFA a muita esquerda dura e pura. A presença de Marcelo e Tomás não permitia a grande lavagem e absolvição colectiva em que o PREC e a seguir a democracia assentaram. A JUSTIFICAÇÃO 3. Chegou ao Brasil a 26 de Maio, um domingo, e foi viver provisoriamente para o Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro. Poucos dias depois já tinha sido contratado pela maior universidade privada do Brasil, a Universidade Gama Filho, onde ensinou durante todo o exílio e a que legou a sua biblioteca. Esteve no mosteiro pouco tempo. Em Junho, arranjou uma casa própria, em que podia receber a família, amigos do Brasil e amigos que iam aparecendo de Portugal. Pouco a pouco, a vida começou a entrar numa rotina de que ele "não se queixava". O que lhe doía, e não deixou nunca de lhe doer, era "a traição" da gente em que confiava (ou confiara) e "a pusilanimidade daqueles de que havia o direito de esperar uma palavra pública de desagravo e de justiça". Embora abrandasse com a idade e a distância, guardou até à morte um ressentimento profundo contra o pessoal do antigo regime que desaparecera de cena ou se adaptava discretamente à situação, contra alunos de vária espécie e bordo que o ignoravam e esqueciam, contra o país que o rejeitava. Principalmente, sofria com o abandono e uma existência sem destino. Perdera "pátria, valores morais e materiais, sonhos, ideais, aspirações". "Que poderia querer mais? Morrer." Morrer era o seu desejo "mais ardente".
De qualquer maneira, antes de morrer, faltava ainda a sua apologia final. No Depoimento falara dos cinco anos de que fora directamente responsável. Mas não lhe bastou. Desde o princípio um homem do regime, achou que devia defender o regime (e Salazar com ele), quando Portugal inteiro o condenava. As Minhas Memórias de Salazar, que começou a escrever em 6 de Setembro de 1974, são essa defesa.
Meia dúzia de palavras do prefácio mostram o equívoco essencial do livro e do pensamento de Marcelo. Equívoco? Ou ficção? Ou pura e deliberada falsidade? É difícil distinguir e, de fora, um leitor, mesmo tolerante, inevitavelmente suspeita que ele mesmo nem sempre distinguia. Nesta última justificação, Marcelo parte de três premissas. Primeiro, a de que Salazar não era um ditador. Segunda, a de que "poucos períodos da história política portuguesa decorreram sob tão grande preocupação do respeito pela legalidade por parte dos governantes como o da vigência da Constituição de 1933". E terceira, a de que, em 1926, se aceitava como "verdade apodíctica" a limitação de algumas "liberdades públicas", que interessavam a poucos, para garantir "a plenitude do gozo de outras", que interessavam à "generalidade das pessoas".
O que se segue é, como se calculará, a longa descrição do exercício do poder pessoal de Salazar, segundo regras que ele mudava segundo a sua conveniência ou comodidade. O bizantinismo jurídico, natural em professores de Direito, e a insistência em fórmulas burocráticas davam uma aparência de "correcção" ao "processo". Mas ninguém se atrevia a agir independentemente, dentro ou fora da lei. Marcelo parece não ter sentido a sua humilhante subordinação à vontade (e ao capricho) de um homem. Também ele interpretava ansiosamente os sinais de graça ou desgraça que o amo desdenhava dar, se afligia com a contínua intriga dos validos e sabia a sua posição à mercê de acidente, de um gesto, de uma palavra a despropósito. Não tirou disto qualquer lição.
A necessidade de acreditar na existência legítima e legal do regime acabou no extremo por o fazer acreditar em eleições que não enganariam (e não enganaram) o mais pobre pateta de Portugal. Achou a oposição de 1945 injusta, ingrata, insultuosa e brutal e achou, por exemplo, que ganhara "a partida" (uma "vitória límpida) contra Norton de Matos (que desistiu). O mundo de fantasia da ditadura corrompia a inteligência. Sozinho no Rio, velho e sem esperança, Marcelo não conseguiu rever com algum realismo e senso crítico (ou senso tout court) o fracasso da sua vida. Nem a catástrofe de 25 de Abril lhe ensinara nada. As Minhas Memórias de Salazar só lhe serviram para estabelecer o lugar excepcional que ocupara perante o "chefe" e se conferir postumamente a legitimidade da sucessão (que Franco Nogueira pretendia postumamente "usurpar"). De resto, preferiu o papel de vítima incompreendida e atraiçoada. Como testamento político, não se imagina pior. PORTUGAL DE LONGE 4. Convencido da sua razão e da virtude absoluta do antigo regime, Marcelo não se interessava e quase não comentava o que ia acontecendo em Portugal. Quando deixava cair a sua opinião, era em geral com um desprezo militante e um ressentimento mal escondido. O PREC ainda o "angustiou" e o levou a falar em finis patriae. Mas já não "partilhou" o "optimismo" da emigração política no Brasil com o 25 de Novembro: "Receio que a terapêutica em curso não vá por diante e que dentro de um a dois meses ocorra um novo golpe e de maior violência. Tudo resulta do equívoco que se criou na vida nacional com o 25 de Abril, na onda de falsa liberdade em que uns destroem a pátria e os outros, mesmo quando se opõem, colaboram nessa destruição."
Em Portugal nada podia correr bem, porque, se corresse, ficava em causa a presuntiva excelência da ditadura. Na véspera da primeira eleição para a Assembleia da República, Marcelo escrevia: "Pela via aritmética, clamando que são eleitos pelo voto popular, vemos alçados ao poder analfabetos, traidores e desonestos que conhecemos de longa data. Alguns nem serviam para criados de quarto e chegam a presidentes da câmara, a deputados, a governadores civis e mesmo, quando não querem, a ministros." A democracia portuguesa era necessariamente uma farsa.
E farsantes por definição as personagens que a representavam. Quando Soares foi ao Brasil, Marcelo escreveu: "O tal Soares aqui deu o espectáculo da sua mediocridade, da sua demagogia parva, e andou no meio da praticamente total abstenção dos portugueses, a fazer gestos vãos e gaffes valentes." Apareceu Eanes, numa visita oficial, e o ódio voltou: "Anda por cá agora o Generalíssimo (graduado) dessas bandas. Seco, cara de pau, com ar permanentemente zangado neste país de cordialidade e bom humor, é um desastre diplomático, mas representa bem a má consciência de um exército fujão e de regime que arruinou Portugal."
Nem a direita (da democracia, claro) lhe merecia mais benevolência. Continuava a acreditar em Diogo Freitas do Amaral, apesar do seu "complexo de esquerda", como "o único arrimo" da oposição ao PS e ao PC e achava que, se ele se entendesse com Sá Carneiro numa "frente antimarxista", "haveria talvez uma réstia de esperança". Mas tratava invariavelmente Sá Carneiro com uma certa desconfiança e desdém. Quando se fundou a Aliança Democrática (cuja "vitória" ele, de resto, desejava) mostrou logo o seu cepticismo: "O Sá Carneiro chefe de Governo? Não tem estofo, nem envergadura para isso e os seus colaboradores imediatos também pouco valem para governar o país. O Diogo tem muito mais categoria mas ainda está mais desamparado de figuras de segunda linha."
O professor de Direito e o discípulo de Salazar persistia em julgar políticos como assistentes. Na ordem, na regularidade e na obediência de Freitas reconhecia o seu mundo, em Sá Carneiro não. Mesmo depois de a AD ter ganho, continuou com "apreensões". A uma amiga, confessava: "o Francisco Sá Carneiro é certamente o menino Jesus para a Mãe, a minha amiga Francisca Lumbrales, mas é duvidoso que possa sê-lo ou parecê-lo para o país inteiro."
A opinião de Marcelo sobre Sá Carneiro, embora professoral e pouco lúcida, era temperada por um certo respeito. Com o resto da direita não se coibia. Ridicularizava a puerilidade de Francisco Balsemão, o "Francisquinho", com o seu Expresso e o seu lume no olho" e, numa altura em que o "Francisquinho" passou pelo Brasil, observou que "bem pobre" devia ser a "matéria-prima em Portugal", para "se recorrer a tão medíocre mensageiro". Jaime Nogueira Pinto não se saiu melhor: "No meu governo", explicava Marcelo, "publicava um jornalzinho subsidiado pelo SNI (com ordenado para ele)."
De qualquer maneira, com a sua fúria e o seu rancor, Marcelo Caetano percebeu do Rio o que muito boa gente não percebeu em Lisboa: a inevitabilidade da derrota de Sá Carneiro num confronto directo com Eanes. Considerava o general Soares Carneiro "excelente" e até "óptimo". A "manobra" de Sá Carneiro é que lhe parecia "mal conduzida". Marcelo suspeitava, e com razão, que Sá Carneiro ("nessas coisas mais autoritário do que o próprio Salazar") impusera a candidatura do general ao grosso da AD e que subestimava largamente a força de Eanes. Pior: Marcelo também previu, e acertou, que a recusa de Sá Carneiro e Freitas de governar com Eanes só os prejudicava a eles e acabaria por entregar Portugal a uma personagem de recurso. Aquela "aventura" era "imprudente". Infelizmente, na cabeça de Marcelo, esta clara análise política andava misturada com a ideia peregrina de que Adriano Moreira, uma bête noire, planeava aproveitar a confusão para se alçar a primeiro-ministro. E, se isso acontecesse, dizia ele a sério, preferia o socialismo. O passado nunca o largava. O FIM 5. Mas, devagar, o tempo diluiu a intensidade e do ódio e do desapontamento. A enorme lista de inimigos do peito foi sendo esquecida: Spínola, Silva Cunha, Silvério Marques, Franco Nogueira, Adriano Moreira, este e o outro, que o tinham "caluniado" e "traído". Falava ainda dos discípulos, que o abandonavam, não o citavam ou não visitavam. Mas sem a irritação do princípio. Começou também a ficar progressivamente sozinho. A emigração política do PREC voltou quase toda a Portugal e a que não voltou preferiu ignorar os meios do exílio. Morreram alguns fiéis e a própria família o ia ver com menos regularidade. Insistiram com ele para que viesse à Europa, ao Sul de França, ou a Paris. Recusou. Não queria que pensassem que ele passeava pela Europa, como um turista vulgar. O Brasil era o seu lugar: um lugar de martírio.
Surpreendentemente, em 1977, decidiu alimentar um idílio por carta com uma professora da Faculdade de Letras, que de repente se descobrira uma intensa devoção por ele. Trocavam longas cartas de uma intimidade rara na correspondência (publicada) de Marcelo. Ele escrevia poemas (pelo menos, prosa "poética"); ela mandava flores secas, como competia, e algas da praia das Maçãs. Um Marcelo inimaginável anula de repente a figura disciplinada e seca do ditador: "... Estamos brincando com fogo... Com aquele fogo que arde sem se ver... Estamos brincando com a água do Oceano que nos separa E que põe entre nós a distância que nos dá segurança Permitindo-nos afirmar, cultivar e inflamar sentimentos Sem risco para a tua intocabilidade ... Os teus escrúpulos religiosos... Mas escrevemos um ao outro palavras cada vez mais significativas As tuas mãos entrelaçam-se (no papel) com as minhas mãos Os nossos olhos perscrutam-se na escuridão a querer conhecer Penso em ti todos os dias e contigo converso dia e noite como um fala-só." O episódio seria irrelevante, se não revelasse a tristeza e solidão de Marcelo. E não vale a pena insistir nele, excepto por um ponto. Provocado pela insistência da amiga, Marcelo acaba por explicar expressa e claramente o seu agnosticismo e a sua posição perante a Igreja. Não é agnóstico, avisa ele, "movido por qualquer ideia mesquinha": "Zanga com os padres, política da Igreja, etc." Não. "Na base de qualquer atitude religiosa está a fé (virtude sobrenatural, etc., etc.). A partir da fé em Deus pode ser-se cristão, budista, xintoísta, seja o que for. Se falta a fé, o resto é hipocrisia social, casca sem miolo. Ora, eu perdi a fé. Por um processo lento, que dura há bastantes anos, durante os quais lutei com a razão, procurei não abandonar práticas, evitei dar escândalo. O caso é que nada mudou." E, a seguir, acrescenta: "Às vezes perde-se a fé e conserva-se o respeito pela Igreja em que ela foi vivida: em mim desapareceu uma e não ficou o outro. Mas são coisas distintas: não sou mais católico, porque que definem o catolicismo; não sou mais cristão, porque não acredito na divindade de Cristo; não sou mais religioso, porque não presto culto a Deus, a quem não nego, apenas considero a criação e conservação do mundo um grande e prodigioso mistério insusceptível de ser penetrado pela inteligência humana, capaz apenas de procurar hipóteses explicativas, das quais a existência de Deus é uma."
Quanto à Igreja, Marcelo é taxativo: "... a Igreja é uma organização humana, política, oportunista, que capta fiéis como os candidatos captam votos. Respeitava-a se ela continuasse igual a si mesma e não temesse cair de pé para não negar nada do que um dia apresentou como eterno. Mas afinal é uma espécie de CDS." CDS ou não, nem a viagem de João Paulo II ao Brasil o comoveu. Não resistiu mesmo a um comentário de puro gosto jacobino e anticlerical. "O Papa falou no Nordeste sobre a seca, a miséria do povo, os deveres do Governo para com aquela pobre gente... Certíssimo. Mas se um gesto taumatúrgico dele fizesse chover, isso sim, é que era original... e bom!"
De tudo, na inconsolável velhice de Marcelo Caetano, ficava o trabalho: aulas, conferências, os livros que publicava e uma ocasional intriga de eruditos, que o distraía e o compensava da impotência política. Infelizmente, no Brasil, não tinha acesso à maior parte do material de que precisava, um ambiente universitário que o animasse ou alunos com aplicação e o fervor dos da Faculdade de Direito de Lisboa. Fosse como fosse, resistiu e trabalhou até ao fim: com persistência, com método, com desespero. Do naufrágio, não lhe restava mais nada.

Um comentário:

Anônimo disse...

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