segunda-feira, 11 de julho de 2011

Café com Cicuta II

















Depois de experimentar o famoso café com cicuta, resolvi arriscar um convite ao meu amigo:


“Que tal, mais tarde sairmos um pouco, poeta?” – disse arriscando receber um indiferente silêncio e ele me chamar a atenção para a roupa que um sujeito de bigodinho fino estava usando, mas Enzo olhou para mim e disse com sua usual elegância no falar:


“Meu querido anônimo, você está me cantando?” – perguntou, enquanto eu fiquei, por alguns instantes, entorpecido, sem palavras. Vendo o meu estado catatônico, ele continuou: “Brincadeira, anônimo. Só queria fazer a digestão de tantos cafés que tomei esta tarde, aqui nesse lugar chistoso. Claro, que quero sair, por que não? Aonde o amigo anônimo quer ir?” – disse ele, agora com uns dois centavos de dólar de sorriso no seu rosto jovial cheio de força, diferente do meu, cansado e sem a seiva da mocidade. Saí do transe do receio para sorriso dos felizes. “Às oito?”, “Sim, as oito”. ”No meu ou no seu hotel” – eu indaguei-o. “As oito no meu hotel.” – disse ele já distanciado algumas passadas da frente do café.


As oito, em ponto, eu estava na frente ao hotel onde Enzo estava hospedado. Chamava-se Judy Garland Hotel. Logo ele apareceu. Apertamos as mãos. Ele vestia um pulôver azul marinho que o deixava mais velho, mais sério. Não resisti e o elogiei: “O poeta está...” Ele me cortou e disse: “Sei, anônimo. Eu pareço mais sério com este pulôver. Ele foi um presente de um amigo de quando eu passei um aniversário em Londres. Ele pertenceu a Paul L. Monette. O amigo comprou num daqueles brechós incríveis de Camden Town. Você conhece Monette, anônimo? “Não. – eu disse lamentando minha ignorância. “Monette foi um marco em defesa do relacionamento entre homossexuais. Foi um magnífico ensaísta e também grande poeta. Vamos?” Eu confirmei com a cabeça e saímos caminhando. Ele não falou mais. Então lhe perguntei pra onde íamos. “Você é que me convidou, anônimo. Lembra?” “Claro. Claro. Humm... Já sei! Tem um lugarzinho a duas quadras daqui... Deixa eu ver estamos...Hummm...se virarmos a direita e depois á esquerda estaremos lá.”


Finalmente, chegamos ao tal lugarzinho que eu havia sugerido. Chamava-se “Losers”. Perdedores, em inglês. Eu o havia freqüentado algumas vezes que tivera em NY. Lá me sentia à vontade. Enzo olhou pro neon com o nome do café/bar e sorriu. Não perguntei nada. Sabia que aquele lugar o agradaria.


Entramos. Logo, sentimos o ambiente ao ouvir um piano tocando “Secret Love” imortalizada pela loirinha de Hollywood, Doris Day. Um garçom com cara de tristeza e profunda melancolia nos interpelou: “Buenas noches, señores. Quieren quedarse en el mostrador o en una mesa hay?” Eu olhei para Enzo que virou-se para olhar ao redor, me deixando a incumbência de escolher onde íamos ficar. “Una mesa, por favor.” – eu disse. “Por aquí.” O garçom nos guiou até uma mesa no canto, junto ao WC. Menos mal. Sentamos. “ Quieren tomar algo?” - disse o garçom. “Si, yo quiero una Bud, por favor” “Y para el señor?” Enzo olhou para sujeito como quem fosse lhe oferecer um desaforo amostra-grátis e disse: “Un jugo de Durazno con coca.” O garçom olhou pra ele, como lhe pedindo milhões de desculpas por ter que lhe perguntar mais uma vez: “Como, señor?! “Un jugo de Durazno con coca.” ”Sí, señor. Claro!”- disse o garçom sumindo por entre a fumaça e risozinhos dos presentes.


A música parou. Uma luz intensa focou um pequeno tablado do outro lado de onde estávamos. Um homem baixinho com gravata borboleta e óculos de aros de aço iniciou a fala que traduzo aqui: “Senhores, senhoras. Vamos iniciar o nosso sarau. Este é reduto dos escritores e poetas anônimos e fracassados de todos os cantos do mundo. Aqui estão e estarão sempre pessoas que sempre acreditaram que um dia pudessem ser um fracasso naquilo em que fazem. Pois eu digo: Por serem nada famosos é que os fazem ser grandes. Por aqui já passaram nomes que enveredaram para o outro lado. Esqueceram suas raízes de perdedores. Não nos faz falta. Que fiquem com os seus sucessos. Com os seus milhões de livros vendidos. Com as bajulações dos críticos da hora. Aqui estão e sempre estarão os puros fracassados. Os sem importância. Os mal vendidos. Os ineptos para os best-sellers... Losers, o microfone está aberto pra quem quiser começar.”


Enzo se levantou e sem precisar do microfone começou a declamar. Sua voz penetrou os ouvidos das pessoas como veneno de serpente na corrente sanguínea de um babuíno:


“A gorda na janela tampa o sol da manhã.


Nanô, o namorado, sempre lhe pedia:


fica na janela que eu quero te ver dando sombra à minha vida.


Todos os dias, a gorda postava-se à janela e sombreava a casa.


Só que para Nanô não bastava ver sua amada de costas.


Não bastava receber dela o frescor de sua sombra.


Nanô queria possuir aquela mulher como nenhum outro poderia.


Ele queria ser aquela mulher.


Tanto era o amor, que certa manhã ensolarada, a gorda sentiu um toque diferente.


Não o costumeiro toque de Nanô.


Ele pediu calma, calma que hoje vai ser melhor.


Aos poucos, Nanô foi se encostando, se amalgamando, se fazendo a gorda.


E ela gozando, suando, não pára, não pára.


Lá fora, o sol brilhava alto.


Dentro da casa, um corpo gordoamoroso passou a iluminar as paredes, os móveis, as roupas.


E a vida ali nunca mais conheceu a noite.

“A Gorda Sombra”, Rubens da Cunha.” – ele finalizou, mas ninguém o aplaudiu, já que era proibido aplausos ali. Estava escrito, em letras garrafais, na entrada. “FORBIDDEN TO APPLAUD!”.


Enzo sentou. Eu disse “Então, você gosta de Rubens da Cunha?” Ele bebeu um gole do seu pêssego com coca, limpou a boca com um guardanapo e, fumando um cigarro inexistente, deu uma tragada e respondeu: “Não. Eu o odeio!” Eu fiquei surpreso e não agüentei e insisti: “Mas, como? Por quê?” Ele inclinou-se e me disse quase sussurrando: “Ele ama Hilda Hilst!”. Eu fiquei mais confuso: “Mas poeta, você ama Hilda, também!” “Ele voltou-se a posição anterior e mais confortável. Apagou o “cigarro” num cinzeiro, este sim existente e falou: “Por isso mesmo, meu caro, anônimo. Eu A- M- O Hilda mais que ele!”


A noite se seguiu como eu já esperava. Silêncios, pêssegos com coca, Buds e alguns fracassados ao microfone. Ah, aqui e ali, uma musiqueta no piano, para descontrair os anódinos presentes.

6 comentários:

Enzo Potel disse...

aloca.

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Poeta, desculpe, talvez seja os ventos gelados vindo da Argentina que me tem acometido neste momento e que eles chamam de "La sindrome de la Anaconda."

mi queridos abrazos

Sandra Knoll disse...

Mi Dios...cuanta imaginación!!! Me encantó!

passando por aqui ja que tu não passa por ali.

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Knoll, querida, se a imaginação fosse fértil, eu já a teria engravidado, nêga!

gracias pela visita!

Anônimo disse...

Helinho é perigoso, mesmo distante...

Fd

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Meu caríssimo Anônimo FD, é como eu digo no versículo XII:
Cabe aos poetas imortalizarem as dores da alma, a mim, as dores do corpo.
abçs, amico