domingo, 7 de julho de 2013

Eu ou o outro eu?
















EU OU O OUTRO EU?

Por Hélio Jorge Cordeiro

Eu sou aquilo que penso que sou? – pergunto eu, desconfiando do “Cogito Ergo Sum” de Descartes. 

Alguém já falou da sensação de não sermos nós mesmos e isso aconteceu comigo outro dia.

Foi numa segunda-feira de pleno inverno; o ano não vem ao caso, nem onde muito menos, só interessa o que aconteceu.

Eu havia acabado de acordar. O sol brilhava, mas a temperatura era baixa, talvez uns 10 graus centigrados. Fui preparar o café como sempre fazia, desde quando me separei de Eleonora. Pus a chaleira com água no fogo, tirei o pão, margarina e o queijo da geladeira. Pus tudo na pequena mesa da cozinha, que era o local onde, desde a minha separação, eu fazia minhas refeições. A mesa da sala eu reservara para trabalhar com os meus textos. Até que havia espaço no meu quarto, mas, para mim, lugar de dormir e fornicar não é lugar de trabalho e vice versa.

Bom, corri para o banho. Tomei uma ducha de água quente (acho que beirava os 40 graus centígrados). Depois dei um choque com água gelada que me deixava esperto, ligadaço, como dizem os garotos de hoje. Quando me dei conta, a chaleira já apitava tal qual uma mulher desesperada ao ver recusado o cartão crédito depois de ter sacolas e mais sacolas amontoadas aos seus pés.

Tomei o pequeno almoço - gosto muito desse termo português de falar do café da manhã. Segui direto para o meu quarto. Escolhi, como de costume, a mesma fatiota (outra dos portugueses!) que usava para ir pro trabalho: terno preto, camisa azul-clara, gravata azul marinho, meias e sapatos pretos. Uma por uma, fui vestindo as peças diante do espelho. O espelho era desses de pegar a gente de corpo inteiro, que eu encostara ao lado da cômoda. Comprei-o num brechó da Rua Augusta logo depois que me separei. O dono do brechó era um argentino cego de um olho, de maus bofes e resmungão chamado Iorg Lubor, nome sempre questionado pela clientela que dizia ser ele um sueco, mas não um argentino de verdade. Esse era o único momento em que o “hermano” caolho caia na gargalhada e aceitava as pechinchadas dos que ali compravam.

Por falar no espelho, ele causou um furor dos diabos depois da separação. É o seguinte: Depois que nos separamos, havia seis meses, Eleonora teve que me visitar no meu quarto sala para tratarmos de assunto ainda referente a nosso divórcio. Ela chegou e nós ficamos na sala tratando dos documentos que faltavam. Aí, Eleonora foi até o meu quarto, curiosa como sempre, pra saber como eu estava me virando sem ela e pra reclamar de algum detalhe “fora do normal”. Foi quando ela deu de cara com o tal espelho. Não deu nem tempo para criticar alguma coisa. Logo percebi o olho que ela colocara no objeto. Conversou, desconversou e, finalmente, me perguntou por que eu havia comprado um espelho daquele tamanho, se eu morava sozinho. E que, no tempo em que nós vivíamos juntos, eu nunca havia pensado em comprar um para ela. Fiquei escutando sem falar nada.

Eleonora já mostrava sinais de irritação. Ela não aguentou e me perguntou: “Você vai me dar este espelho de presente de aniversário, não vai?” Eu não sei por que disse “Não!” Eu nunca fui de negar nada a ninguém. Sempre me considerei um sujeito nada apegado às coisas materiais, um cara até visto como generoso. Vocês não imaginam como ficou minha ex-mulher ao ouvir aquele não; seco, direto, sem emoção, desacompanhado de justificativa. Saí do quarto para apanhar alguns papéis em cima da mesa da sala, para levar para uma reunião no trabalho e deixei Eleonora se esgoelando lá no quarto. Ela continuou com seu mau humor até a sala. Depois, na porta e, muito provavelmente, pela rua até chegar a sua casa. Por um momento tive pena de Aluísio, seu novo marido.

Arrumei os papéis na pasta de couro, que, aliás, foi presente dela quando consegui emprego na empresa, e voltei para o quarto para mais alguns ajustes no visual. Fui direto pra frente do espelho. Enquanto ajustava a gravata ao redor do pescoço, foi me dando um negócio estranho. Abateu-me um sentimento de culpa que há muito tempo não havia me acontecido. Comecei a achar que eu havia sido injusto com Eleonora ao negar-lhe o espelho. Poderia comprar outro, fácil, fácil. Senti-me fraco, deveras chateado. Terminei de arrumar tudo sobre o meu corpo, agora um tanto baqueado. Diferente do corpo do após banho de choque minutos atrás. Deprimido, perfilei-me em frente ao velho espelho e comecei a me olhar. Ao poucos, fui fixando nos meus olhos; fundo e mais fundo nos olhos refletidos, até não me ver além deles.

Fui para o trabalho. Fiz todas as minhas tarefas. Cumpri com as minhas funções e depois retornei à noite para o meu apartamento com a sensação de que não estava indo realmente para minha casa. Depois de um transito caótico, finalmente, parei o carro em frente ao prédio. Desci e fiquei a olha-lo. Será que eu morava ali? Fui em direção à portaria ainda na dúvida, mas minhas pernas continuavam a me levar. Entrei e tomei o elevador. Ao chegar ao andar em que supunha morar, fui direto para a porta do apartamento. Abri e entrei. Fui correndo para o bar. Mas será que havia bar onde eu morava? Perguntei-me. Não me respondi. Peguei uma garrafa de “Jony Black” coloquei uma dose dupla e fui sentar no sofá.

- Alexandre, é você querido? – disse uma voz feminina vinda lá de dentro do apartamento.

Não sei como, mas minha boca abriu-se e eu respondi que sim.

- Temos que ir. A Janete e o Pablo já estão nos esperando para levá-los para a festinha da escola. – disse ela.

- Lembra, Alê? hoje é a festa de aniversário da escola. – completou com paciência.

Eu estava até confortável, mas batia em minha cabeça uma vozinha dizendo que Alexandre não era eu. Nunca tive filhos e muito menos havia casado de novo, ainda mais com uma tal de Salete. Deixei-me relaxar. Foi quando Salete chegou à sala, aliás, uma baita de uma sala. Havia quadros e esculturas espalhados por todo o ambiente. Salete era esbelta. Um olhar gracioso, generoso por assim dizer. Os lábios dela pareciam ter sido esculpidos à mão em alabastro italiano por um escultor da renascença. Ela beijou-me com candura. Ajustou a minha gravata e me ajudou a levantar com aquelas mãos de seda e de um perfume primaveril.

- Os meninos já estão lá em baixo nos esperando, querido. – disse ela, com uma voz que mais parecia o canto de uma cotovia, diria o Bardo do Avon.

Descemos. Fomos direto para a garagem. “Pensei que havia deixado o carro em frente ao prédio!”- em minha mente uma voz que parecia a minha falou bem baixinho. Mesmo assim, segui ao lado dela e de duas lindas crianças que haviam se juntado a nós; ele com um jeito de menino levado, mas inteligente e ela de uma princesa mimada de filmes da Disney. Os dois pularam para me beijar. Correspondi meio sem jeito. Chegamos ao carro... e que carro! Nada se parecia com o meu Fiat Uno 2004. Era uma Chrysler Town&Country Prata. Não sei como dei partida no bólido. Saímos da garagem com todos cantado I Have a Dream do ABBA.

Voltamos para casa tarde da noite. Os meninos cochilavam no banco de trás. Finalmente, chegamos ao apartamento. Levamos as crianças para seus quartos, demos boa noite e voltamos, eu e Salete, para sala. Fui beber um drinque, mas ela me puxou para nosso quarto. Fechou a porta atrás dela. Empurrou-me na direção da cama. Caí sentado. Ela foi retirando, primeiro os sapatos, depois começou a abrir o vestido. Arriou-o aos poucos até revelar diante de meus olhos um corpo escultural. Usava uma lingerie lilás que combinava com sua pele alva e acetinada. Salete veio em minha direção com um olhar sensual e mordendo o lábio inferior. De repente, vi, aterrorizado, por trás dela, um espelho que me pareceu familiar e que refletia a mim e parte dela. Afastei-a com desabrimento e corri para virar o espelho de costas para a parede, por via das dúvidas. Por alguns instantes fiquei a matutar sobre se aquele que estava ali era eu ou o meu reflexo, mas cheguei à conclusão que isso não mais importava. Voltei para os braços de Salete, fosse eu quem fosse.

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