quarta-feira, 19 de junho de 2013

Com um friozinho nos pés




























COM UM FRIOZINHO NO PÉS

Por Hélio Jorge Cordeiro


Dizem que, com a idade avançada, nós diminuímos de tamanho. A coluna enverga ou são as pernas que encurtam? O que eu sei é que ando com estranhas dores nas pernas e isso aconteceu desde o dia em que eu acordei, como não era de costume, bem cedinho. 


Naquele dia, não levantei de imediato. Fiquei deitado. Olhei em direção à janela. O sol continuava lá, brilhante, alheio à minha ínfima presença no mundo. Minutos se passaram até que decidi me levantar, mas voltei atrás, pois algo me dizia que eu tinha crescido durante o sono. Como era possível?! Estiquei-me todo e vi, com espanto, que meus pés ultrapassavam os limites da cama. Mas como?! Perguntei-me, outra vez, agora mais alarmado do que antes.


Pus-me a respirar fundo e sequenciado. Logo me dei conta de que aquilo não era nada mau, já que, ao exercitar a respiração, eu me lembrei dos tempos de menino, quando faziam de tudo para eu ter uma altura de jogador de basquete, o que, na realidade, nunca aconteceu. Meus pais eram pessoas de baixa estatura. Minha mãe dizia que não queria que seu querido filho ficasse baixinho, pra não servir de chacota junto aos meninos da escola e nem junto à vizinhança. Com essa determinação, ela resolveu, desde cedo, me submeter a diversos exercícios: como me deixar pendurado no galho da mangueira atrás de casa, por minutos a fio; amarrar-me na cama, como naquela roda de tortura da idade média, me deixava esticado por horas, depois que eu chegava da aula. Mas, verdade seja dita, nunca me faltaram os lanchinhos feitos com esmero próprio das mães zelosas. Um saudável martírio, pois. Não é que todo aquele sofrimento deu resultado?! Terminei crescendo e ficando com a altura acima da dos meus pais.


Mais calmo, mesmo assim me perguntei, outra vez, como podia aquilo estar acontecendo àquela altura da minha idade? Mas nada me chegou à mente como uma razoável resposta. O que estava acontecendo comigo era mesmo um milagre, apesar de duvidar de que tal fenômeno fosse possível de acontecer a um sujeito que tinha como religião o ateísmo. 


Olhei para os pés e achei-os iguais. Mesmo assim, fui direto aos sapatos e calcei-os. Perfeitos! Nada acontecera com eles. Os dois continuavam a calçar 42. Menos mal, voltei a pensar. Mas... e as roupas? Fiquei, finalmente, de pé. O pijama estava mesmo pescando. Pensei nas calças e nas camisas, mas isso não era problema, já que estava na moda roupas curtas e justas, justifiquei aos meus botões. Tinha lido e escutado na TV algumas tendências da moda. Entretanto, eu sabia que não seria nada fácil a minha nova figura, quando chegasse à repartição. O que eu diria pra eles? Eu sempre fora um sujeito comedido no vestir, discreto até demais. Cafona, cai melhor. E o que eu diria a eles? O que tinha acontecido comigo para aparecer assim, com ares de rapaz moderno, na moda, com essa idade? Abarrotado de interrogações, mais do que questionário do IBGE, deixei as respostas para os momentos apropriados. Me vesti e fui tomar o meu café da manhã.

Ao chegar à cozinha, Joana já havia postado tudo no seu devido lugar: café, leite, bolo de rolo, suco de laranja, queijo light e bananas. A velha negra me cumprimentou com seu indefectível “bonsdias, Arizinho” e não falou mais nada. Não havia notado a mudança, pensei. Quiçá, devido à idade avançada. Outro dia reclamara que andava com “dificulidade” em enxergar o buraco da agulha. Mas será que ela não notou nenhuma diferença? Fui escovar os dentes e, em seguida, fui embora, mas não sem antes lhe fazer uma pergunta: "Joana, não notou nada de diferente em mim?” e ela, lavando a louça, me respondeu: “Hum, xôver, ah...” Eu logo vi que era impossível aquilo passar despercebido por ela e perguntei: “Ah? Então o que é?” Ela falou olhando-me de cima abaixo: “Arizinho tá “carsando” aquele sapato de “sarto” baixo, numé?” Incrível! A pobre, em vez de notar que eu havia crescido na altura, notou justamente o contrário, que eu havia diminuído. Com isso, voltei pra sala, peguei as chaves do carro e fui embora para o trabalho. 


Na repartição, bati o ponto e fui pra minha escrivaninha. Ninguém, ao contrário do que havia imaginado, reparou que eu havia dado uma espichada. Mas a minha estupefação veio quando o Marialvo chegou ao meu lado e disse: “Ari, meu caro, acho melhor tu arranjar a bainha das calças.” Puxa, até que enfim alguém reparou. Mas fiquei mais que estupefato quando ele concluiu dizendo: “Joana precisa levantar essas bainhas. Estão ridículas arrastando no chão”. Aí eu perdi a paciência e me levantei dizendo: “Tás ficando louco, Marialvo!” Mas logo me calei ao ver que, realmente, as barras de minhas calças estavam arrastando no chão. Não havia reparado que eu diminuíra de tamanho. Aquilo me deixou aflito. Peguei o meu paletó e avisei que estava indo embora, pois não estava me sentindo bem. Corri direto para o estacionamento. Peguei o carro e fui pra casa, mas na primeira esquina, um caminhão carregado de frangos, atravessou à frente de meu fusca e pum! Acertou-me por inteiro. Levei um pancada na cabeça e morri.


O pessoal da repartição, principalmente, o Marialvo, tratou dos assuntos funerários juntamente com Reginaldo, um primo que eu não via fazia anos. Compraram o caixão e tudo mais para o velório. Me retiraram do IML depois de ser tratado. Disso, Joana fizera questão de cuidar. Deixaram-na com a tarefa, talvez porque o meu corpo não havia sofrido a ponto de me deixar desfigurado. Naquelas condições, era possível me deixar nos trinques como poucas vezes me viram.


Reginaldo chegou com o caixão, com o pessoal da funerária. Mas o meu corpo não coube, para espanto de todos. Meus pés ultrapassavam os limites do ataúde. “Mas eu medi! Nunca erro nessa tarefa!” - disse o agente funerário. Voltaram a medir meu corpo.


Joana esperou mais de três horas por outro caixão. Reginaldo e Marialvo haviam levantado os preços e a funerária mais barata ficava nos limites da cidade e de lá, no trânsito infernal que estava, ida e volta levava um tempão. 


Joana cochilava sentada ao lado de meu corpo, que ficara numa maca, quando os dois chegaram com um novo caixão. Chamaram os enfermeiros e foram me colocar no caixote. Só que este último ficara grande. Sobrando! Cabiam dois! Eles não acreditaram. Correram para fechá-lo antes que eu voltasse a crescer outra vez. 


Fui enterrado por fim, mas, o que continua me incomodando, às vezes, é um friozinho nos pés, que ficaram pra fora da cova e que me provoca essas dores nas pernas.

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