A BALEIA, O HOMEM E O AUTOR
Por Hélio Jorge
Cordeiro
Cansado, ele decidiu desparecer, espichar o corpo o quanto
pudesse ou aguentasse. Seguiu por uma trilha até um rochedo, incrustado na
falésia como uma cereja meio deslocada do topo de um bolo. Espichou-se. Ouviu
todas as suas vértebras cantarem. Retornou a seu estado normal; curvado. Tinha
a altura de 1,89 cm e de longe parecia um arco. Seu nome? O chamavam de Moby
Dick.
Divisou lá embaixo, junto às pedras, onde as ondas teimavam
em quebrar todos os dias, uma coisa que não conseguia identificar. Sabia que
era grande, talvez três vezes maior que ele ou mais. Desceu cautelosamente o
rochedo, crostas e covas, saliências pontiagudas e cortantes. Foi descendo.
Finalmente, já na areia da praia, foi deixando suas pegadas pra trás. Logo, uma
a uma, as pequenas marolas se encarregaram de apagá-las.
Quando se aproximou, deu de cara com uma baleia. Ela era
mesmo enorme. Parecia morta. Os olhos estavam cerrados. Seu corpanzil estava
imerso pela metade na areia. Sequencialmente, as ondas lhe banhavam o corpo por
completo. Apoiou-se na lateral do animal e tentou circundá-lo, mas assustou-se
quando escutou uma espécie de mugido seguido de um bocejo rouco. O corpo do cetáceo fez um movimento em
pendulo fazendo-o desabar na água, molhando-se dos pés à cabeça.
- Está viva! – gritou ainda engasgado com areia, água
salgada e um punhado de sargaço.
Retomou o equilíbrio e voltou para a frente da baleia. Inquietou-se,
pois não conseguia olhá-la nos olhos. Nos dois olhos, claro. Decidiu então ficar
de lado para poder fixar melhor o seu olhar através de um dos olhos do bicho.
Pensou: “este olho é maior que a minha cabeça! “ Este pensamento lhe pareceu
inadequado, então ele corrigiu e voltou a pensar: “ a minha cabeça é menor que
este olho!”
Olá! – falou a baleia, com uma voz maviosa, daquelas que
escutamos sempre em narrativas de fábulas.
- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! – exclamou Moby Dick, ainda
aturdido com o fato de estar ouvindo uma baleia falar.
Moby Dick olhou para os lados e depois para o alto, onde
estivera anteriormente e logo descera. Certificou-se de que não havia ninguém a
vê-lo dialogar com o animal marinho. “Ninguém à vista!” pensou e aliviou-se.
- Olá... Mas você fala?! – disse ele e inquiriu ao mesmo
tempo.
- Sim. Qual é o problema? Você não está falando também? –
disse a baleia.
- Mas eu...
O animal o interrompeu:
- Eu era para estar confusa e surpresa por você falar comigo,
mas nem por isso eu fiquei assim... aturdida... – disse a baleia.
- Mas eu...
Outra vez interrompido, Moby Dick não conseguiu formular sua
justificativa:
- Vamos fazer o seguinte: você volta lá para trás e vem aqui
pra frente e diz pra mim:
Olá! – propôs a baleia.
- Como é? – disse Moby Dick.
- Vamos lá! Você entendeu. Vamos, vá lá para trás e volte.
Em seguida olhe pra mim e fale: Olá! – ordenou a baleia.
Moby Dick ficou um pouco intimidado com a proposta e
obedeceu. Foi para a traseira do animal e, como ela pedira, voltou e disse
quase de forma teatral:
- Olá!
- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! –, com um ar de surpresa e
susto exclamou a baleia, também de forma teatral, arregalando o único olho que Moby
Dick podia divisar.
Moby Dick ficou olhando-a sem dizer uma só palavra. Assim
também ficou a baleia.
- Então? – perguntou ela.
- Então o quê? – ele a indagou de volta.
- Você não diz: Olá! Mas você fala?! – falou o cetáceo com
ares de deboche.
- Não. – disse Moby Dick.
- Então? – ela quis saber se depois daquele “não”tinha
mais...
- Então nada. – ele respondeu desmotivado.
- Está vendo? – falou ela.
- Está vendo o quê? – falou ele, com impaciência.
- Tem certas coisas que só valem para nos dar segurança. Para
nos sentir parte do mundo como sendo maiores, melhores e únicos. Coisas desse
tipo, você entendeu?
- Sei não... – Moby ficou matutando...
A baleia começou a movimentar-se como se cachorro fosse. A
sua força era tão grande que água e areia foram espalhados a metros de
distância por tudo ao redor. Assustado, ele procurou se proteger.
- Está vendo? Isso é um pouco do que me faz sentir segura,
maior, melhor e única. – disse a baleia com ares de superioridade.
- Puxa. Você sabe ser mesmo convincente. – falou ele,
limpando-se, mais uma vez, dos pés à cabeça.
Ele, a essa altura, já havia abstraído o fato de estar mesmo
conversando com uma baleia e então ...
- Já que você fala, creio que tem um nome. Acertei? –
perguntou ele carregando no tom de sarcasmo e ironia.
- Claro. Chamam-me
de Herman Melville.
– disse ela com certo orgulho.
- Herman Melville?!
- O que ele tem de errado? – indagou, ela, com surpresa.
- Bom, é que é um nome esquisito. Parece até nome de gente e
não de... Ah, você não sabe diferenciar
uma coisa de outra, não é mesmo?...
- Quer apostar? – respondeu indagando, Melville.
- Era só o que me faltava! – debochou, ele.
- Veja bem, senhor... A propósito, como o chamam? – a baleia
perguntou, com uma clara insatisfação e má vontade.
- Moby Dick . – respondeu ele.
A baleia contorceu-se toda e começou a se sacudir como
fizera antes.
- Essa é mesmo muito boa!
- disse a baleia caindo na gargalhada.
- Que é que tem meu nome de errado?- perguntou Moby.
- Tá vendo? Agora você se indigna, por eu achar o seu nome
esquisito. Um contrassenso.
- Mas... Deixa pra lá. Uma perguntinha... O que faz você
aqui na beira da praia... Não é perigoso? Você não pode ficar encalhada? Aliás,
você parece estar encalhada.
- Não. Não estou. Se eu posso falar, posso qualquer coisa,
não é mesmo?
- Humm... É, faz sentido.
Moby ficou matutando sobre o assunto, até que...
- Outra coisa...
- Sim, pois não.
- Será que você não é fruto de minha imaginação? Um delírio
meu?
- Mas não será ao contrário? Você é que pode ser um delírio
meu! Hein?
- Não pode ser...
- Por que não, senhor... Moby Dick? Por que apenas o senhor
pode ter delírios e não eu? Será que o senhor aqui ao meu lado me contestando
não se trata de um delírio de minha imaginação, hein?
- Mas este relato começou comigo lá em cima... – disse
apontando para o topo da falésia.
- Mas quem disse que eu daqui de baixo, já não estava
observando o senhor se espreguiçando que nem uma morsa lá em cima, depois o
acompanhei descendo, até o senhor falar comigo?
- Eu disse que o relato começou falando de mim... E de nosso
encontro aqui embaixo... Por alguém... – refletiu Moby Dick.
- Não seria esse alguém eu? – afirmou a baleia cheia de confiança
de que acabara com a discussão naquele instante.
- Ou por outro lado poderia ser eu. – afirmou Moby,
demonstrando confiança ainda maior do que a sua interlocutora.
- Mas você teria que se referi a você como Eu... Por exemplo:
“Cansado, Eu decidi desparecer, espichar o corpo o quanto pudesse.” Bla, bla,
bla...
- É verdade. Concordamos uma vez. E quem seria esta terceira
pessoa, hein?
- Minha imaginação? – Melville falou com convicção.
- Ou minha imaginação? – retrucou Moby, por sua vez.
- De qualquer forma, esse alguém deve estar nos observando e
nos ouvindo agora... – disse a baleia, parecendo dar-se por vencida...
- Olha, se este relato começou comigo... Pode ser que o
relator seja eu na terceira pessoa, mas sem querer dar a entender que sou eu,
entendeu? Como? Omitindo o uso do Eu isso, Eu aquilo... – falou Moby convencido
que convencera Melville.
- Mas de jeito nenhum. Como você está vendo, eu posso falar
e pensar. Pode ser o meu pensamento relatando, baseado no que eu estava vendo.
Lembra? Começou com você lá em cima se espreguiçando etc, etc.
- Você parece mesmo um... como se costuma dizer: Você é
mesmo um osso duro de roer!
A baleia voltou a se remexer e a gargalhar mais e com maior
estardalhaço que da primeira vez.
Moby começou a ficar constrangido com aquela situação. A
atitude de Melville o fez ficar deveras desconfortável. Para ele, aquilo era
ridículo...
- “Agora essa! Eu virar motivo de chacota de uma baleia!” –
pensou ao mesmo tempo em que Melville bocejava, tediosamente.
Moby sentia que aquilo era demais para os seus brios. Para a
sua condição de ser inteligente e superior na cadeia animal do planeta.
Mesmo diante de tanta petulância da baleia, Moby Dick
continuou a conversar sobre outras coisas menos importantes, enquanto o dia se
esvaía com o sol a se desmanchar no horizonte.
Ah, a propósito, agora que acabei de narrar esta história, quero
me apresentar: chamo-me Ahab e sou uma gaivota em busca de peixes acrobatas
que, por um acaso, parou para descansar na mesma praia onde Moby Dick e Melville
se encontravam.