sexta-feira, 9 de julho de 2010

Urubus, Sabiás e uma Brahma geladinha na consciência



















Pessoal, aqui está uma bela crônica de meu amigo Luciano Nascimento. Uma crítica bem pertinente para os momentos de hoje, onde se discuti as questões do meio ambiente e da relação do homem com ele mesmo. Aqui o Luciano trata da coisa com um humor sutil, bem característico aos bons cronistas. Vale a pena ler e aproveitem para comentar se assim o quiserem.

FOLHA SECA
por Luciano Carvalho do Nascimento

Viver em regiões metropolitanas pode ser bastante interessante. Dia desses, plena terça-feira,cansado do corre-corre cotidiano, resolvi atravessar a rua e parar. Era uma rodovia bastante movimentada, uma das mais movimentadas do país, a BR 101, a poucos metros da minha casa. Há poucas semanas ouvi
falarem de novo da revitalização daquela região. Durante muito tempo ela fora só o pedaço de terra que o
asfalto da estrada não cobrira; depois passou a ser só o lado de lá da estrada; depois a favela que tinha na
frente do shopping novo que construíram do lado de cá da estrada. Moro do lado de cá. Sou vizinho do
shopping. Um emergente...

O lado de lá já teve seus tempos de glória. Era freqüentado por artistas e tudo. Gente de nome. Já
ouvi até sobre um cação que viveu na década de sessenta nas águas dessa prainha do final da Baía da
Guanabara, e vez ou outra se alimentava dos pescadores da região, os que estavam acabando com o
enorme manguezal por ali existente. Até que um desses homens, mais forte, mais corajoso, ou só mais
maluco mesmo, acabou se atracando com o bicho e o matou a facadas.

Ia lembrando essa história, olhando aquela areia agora suja e a lama negra da margem que a água
preta tentava esconder. O sol das três horas da tarde realçava a cor de tudo. Tudo brilha mais quando se
está à beira-mar e se têm esses dois caminhos dourados diante dos olhos: um na água, quente, se
alargando até o horizonte; outro, na garrafa, gelado, se infiltrando da goela até a corrente sangüínea. O
verde das folhas da imensa amendoeira reluzia. A vidraça da fachada do shopping cintilava seu azul
espelhado. Os carros corriam no asfalto da rodovia numa velocidade inversamente proporcional ao
balanço preguiçoso dos barquinhos ancorados ao sabor das marolas. Num carro, estacionado como eu
embaixo da amendoeira, o funk no volume máximo torturava ainda mais um pobre canário, piando
melancólico em sua gaiola, invejando os acordes livres do sabiá-laranjeira vizinho só de galho. A árvore
oferecia sua sombra a homem, bicho ou coisa, sem distinção, e um grupo de jovens cães magrelos
brincavam despreocupados também ali, entre os restos de frutos decaídos, pisados e apodrecidos. Só
pararam quando um dos quatro carteiros – uniformizados, sentados e bebendo a terceira pet de guaraná –
aremessou uma das garrafas vazias contra eles, que se assustaram e correram.

Foi então que percebi uma estranha silhueta vindo do mar. Era um ideograma, uma espécie de agá
mal-traçado sobre uma base mal-feita. Seria o ícone da solidão sem o alento da chegada; era um velho
pescador voltando de um dia no mar. Seu barco não lhe proporcionara abrigo do tempo, e a magreza
carcomida dos dois denunciava o quanto. Deu suas últimas remadas cabisbaixo, como elas costumam ser.

Saltou para a água, pegou uma corda que trazia amarrada à proa da pequena canoa, puxou a cansada
companheira para a areia, prendeu-a, e começou a recolher o que nela havia: uma caixa de isopor velha
com a tampa quebrada, uma rede rasgada – logo devolvida ao lugar de origem –, uma corda esgarçada, e
um saco preto pouco menos que vazio.

A chegada do isopor agitou o cenário. Algumas garças, antes indiferentemente pousadas sobre as
demais embarcações já ancoradas, lançaram-se em vôo apressado na direção do suposto alimento fácil. O
velho caronte, de volta do barco recolhendo a corda, xingou alto, se queriam peixe, que usassem as asas,
fossem pescar bem longe dali, talvez tivessem melhor sorte que ele. Gritou ao mesmo tempo em que
jogava o conteúdo da caixa sobre a areia, impregnando de imediato o ar: eram suas iscas, que haviam
apodrecido sem terem cumprido seu propósito.

O cheiro forte de carniça não afastou as garças, mas nando de imediato o ar: eram suas iscas, que haviam
apodrecido sem terem cumprido seu propósito.atraiu um gato enorme, até então longe o
suficiente para estar a salvo daqueles cães afugentados pelos carteiros. Destro, aproveitou a oportunidade
e disparou rumo aos restos de isca lançados fora pelo pescador, causando, aí sim, a revoada das aves
brancas. Contudo não durou a supremacia do bichano, pois, se este tentava, resignado, se adaptar à ingrata
dieta, os urubus, naturalmente afeitos à matéria putrefata, precipitaram-se sobre o banquete, dispostos, a
princípio, a desconvidar o felino, ou, caso contrário, e melhor para eles, a tê-lo como partícipe da
refeição, mas não como comensal. Um tronco jogado a um canto foi o seu refúgio das duras bicadas.

Por ironia, ou força do ofício, os carteiros prenunciaram a mudança seguinte: ao verem
aproximarem-se os cães, adivinharam que eles expulsariam os urubus. Dito e feito.
Descortinou-se um xadrez com peças inusitadas: garças e urubus disputando os mesmos restos;
gato, cachorros e carteiros honestos não bebendo em serviço; um canário depressivo e um sabiá
debochado; um shopping presunçoso desafiando o mar complacente... A estrada. O trilho dourado mar
afora. A cerveja gelada garganta adentro. A figura esquelética do pescador taciturno.

E eu.

O velho se aproximara e pedira aos carteiros uma das pets vazias. Foi até a birosca que servia a
todos, conseguiu um pouco de água da bica para beber, e voltou reclamando delas: a do bar, quente; a do
mar, suja. Nada mais podia viver ali, seu moço. Acabou. Era lixo pra todo lado. Lá no meio da Baía, um
óleo só; perto das ilhota, onde antes se pegava muito peixe grande, só tinha saco prástico, pedaço de pau,
sujêra. Pensar que tinha até boto por ali... Os homens dos correios concordaram. Era triste mesmo. E se
olharam meio sonsos, um tanto constrangidos com a visível embriaguez do pescador. Ele se afastou,
reclamou um pouco mais, bebeu mais uns goles da água, despejou o restante na areia encardida, e jogou a
garrafa vazia no mar.

Uma lagarta, dessas verdes e cabeludas, caiu da amendoeira dentro do meu copo. Começou a se
debater dentro do líquido dourado. Hesitei um pouco. O torpor, a morte iminente. Joguei a cerveja fora
com cuidado, a lagarta voltou a se mover no chão, sobre uma folha seca da amendoeira. Pedi minha
conta. Paguei. Saí.

E atravessei de volta a estrada, pensando se tudo está realmente consumado.

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