(…) Cidade do Porto,
Portugal, Outono. Era uma daquelas manhãs majestosas, de se fazer
acreditar que o mundo foi criado durante uma delas. Se todo o céu
fosse derramado sobre a cidade, tingiria o Porto de um azul anil
jamais visto em nenhuma escala de cores de que se tem conhecimento.
Em Vila Nova de Gaia,
do outro lado do Douro, a luz da manhã iluminava os casarios das
caves das companhias de vinhos, criando um cenário único, digno de
uma pintura dos grandes mestres. O céu permaneceu assim, limpo,
luminoso, incandescente, por toda aquela manhã.
A tardinha foi chegando
mansamente, preguiçosa. Com ela, chegaram os pássaros, que, aos
bandos, se recolhiam em grandes revoadas aos seus aconchegantes
ninhos, distribuídos pelos galhos das árvores e por entre as
brechas dos telheiros dos casarios centenários, morro acima do cais.
Enquanto isso, os Rebelos findavam suas tarefas por aquele dia e se
aconchegavam nas paredes do cais da Ribeira.
Então, finalmente,
chegou a noite. Soprava uma friezazinha gostosa, daquelas em que
sempre nos apetece uma taça ou mais de um tinto, nesse caso tripeiro
que, acompanhado ou não, é mais que um dileto conluiado.
As luzes logo
iluminaram a Ribeira, ao longo de suas ruas, de suas vielas e de seu
cais. O Douro, como um espelho vivo, passou a refletir todas elas em
ambas as margens, multiplicando-as por todo o velho bairro, em seus
carcomidos casarios com frontarias de granito. Assim também
reverberavam de brilhos um lado e o outro da ponte Dom Luís,
revelando diversos espectros, em suas ferragens, que não se costuma
ver à luz do dia. As luzes seguiam iluminando o Douro até onde ele
banha o mar, e iam se diluindo por entre as marolas sequenciadas, que
prenunciavam noite de maré alta.
Na Ribeira, havia uma
velha pensão de fachada de granito encardido, onde morava todo o
tipo de gente: estudantes, trabalhadores de todas as profissões,
rufiões travestidos de bons-moços e raparigas de reputações
impolutas, ou quase isso. Aquele pardieiro não era o único com
esses tão díspares habitantes.
No primeiro andar da
deletéria edificação, havia um quarto, entre tantos outros, onde
morava a personagem dessa história. (...)