quinta-feira, 2 de maio de 2013

Coisas da Cecília


















  

Coisas das Esfinges

Por Cecília Meireles

Viver não é fácil, mas andar pelas ruas desta minha amada cidade é muito mais difícil. Primeiro porque os tufões que têm passado por aqui se empenharam particularmente em revolver o calçamento; depois, porque os automóveis têm aumentado de maneira considerável e, em matéria de trânsito, a  tendência é caminharem os pedestres pelo meio da rua e trafegarem os automóveis pelas calçadas.

Mas, enfim, a cidade é tão bonita – sobretudo agora com as amendoeiras a perderem as folhas vermelhas e amarelas  - que muita coisa se perdoa aos automóveis e aos tufões.
Acontece, porém que os habitantes desta cidade (e nem todos são crianças) se distinguem por uma invencível amabilidade, um desejo de comunicação difícil de explicar nestes tempos de pressa e indiferença. Quando menos se espera, alguém para diante de nós, e pergunta com evidente satisfação pela charada que nos vai propor:

- A senhora não é Dona Fulana?
- Claro que sou.
- E eu? Lembra-se de mim? Sabe o meu nome?

Eis-nos em pleno deserto, diante da Esfinge. Começa-se a recordar: um cavalheiro assim, desta altura, com esta voz, de óculos, traje azul-marinho, aliança no dedo, gravata de pintinhas... (Mas todos os cavalheiros podem ter gravatas de pintinhas, traje azul-marinho, óculos, e há muitos cidadãos desta altura e até de aliança no dedo...)

- Pense um pouco, diz a Esfinge cruel.

Pensemos.

- Conheço-a desde o tempo de estudante, quando caminhava como quem pisa violetas... ( Bem, deve ser um poeta: percorramos depressa o fichário dos poetas.... Mas é impossível: não somos todos poetas no Brasil?)

A Esfinge diverte-se; aliás, com uma ponderação, uma cortesia, uma finura que assentam bem numa Esfinge.

- O senhor (murmura o suplente de Édipo), o senhor deve ser um famoso orador, um grande mestre, um deputado, um catedrático...

- Ah! Como as mulheres esquecem... A senhora não se lembra de mim; e eu acompanho toda a sua vida, leio todos os seus livros, sei das suas viagens, das suas conferências (nem sempre compareço, é verdade, mas tenho notícias...) A senhora fixou apenas que sou uma criatura verbosa, retórica... Pois vou ajudá-la...

E então, como se subíssemos para um tapete mágico, principiamos a viajar no tempo. Histórias e histórias se sucedem, jamais completamente verídicas, porém muito mais belas, por imaginárias e transcendentes. E nós por aqui e por ali, pisando violetas, colhendo estrelas, batendo asas, derramando neste mundo cornucópias de sonhos...
É preciso que um automóvel suba a calçada para descermos desse arrebatamento. E quase sempre a Esfinge parte sem nos dizer seu nome, deixando-nos apenas a sensação do irreal que somos,  neste mundo de sonhos e memórias...

(extraído do livro de crônica “Ilusões do Mundo” – Nova Fronteira – 2ª edição – 1982)

Um comentário:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.