quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

E viva a picardia!

















E viva a picardia!

por Helio Jorge Cordeiro

Os preparativos para a festa dos Filhos Bastardos de Alzirinha estavam se efetivando. Em Pedra dos Anjos, naquele ano, não haveria festa de qualquer jeito ou maneira. Estava decidido por decreto. Doutor Epaminondas Quero-Quero, o alcaide, decidiu não colaborar com o único movimento festivo existente na vila no dia de Santo Carnobal, padroeiro dos pobres e dos desamparados do lugar.

- Doutor Epaminondas, mas trata-se de um movimento cultural e que pode dar pra vila um “up”, como diz os gringos! - disse dona Guadalupe, esposa de Alfredo Zacarias, dono da farmácia e diretor da única escola da vila.

- Nem pensar, dona Guadalupe! - retrucou o velho empresário e prefeito de Pedra dos Anjos, com a empáfia que o fizera prefeito por mais de seis legislaturas no pequeno lugarejo.

- Sabia que o filho do Coronel Odemário do Gás é um dos organizadores da festa? - falou Alfredo.

- Não, Odemário tá gagá e não domina os filhos depravados que tem! Eu só sei que Alzira foi uma dessas mulherzinhas da vida em Caçambas e que depois veio pra Pedra, até então um lugar de mulheres de virtudes! Uma devassa, é o que ela foi! E ainda querem que o meu munguzá apoie essa festa em homenagem àquelazinha?! - disse, bravo, doutor Epaminondas, fumando o seu charuto.

Nisso, entrou o amigo de Epaminondas, aliás seu braço direito, porque doutor Epaminondas não tinha o esquerdo. Perdera-o numa disputa de braço de ferro, anos antes, quando era apenas um caixeiro viajante que aportara em Pedra, quando a vila era apenas um lugarzinho onde só havia meia duzia de romeiros famintos a caminho do oiteiro de São Esperimião, cidade onde tudo acontecia. Pois então, o recém-chegado, doutor Artigas de Albuquerque, fora coroinha em Juazeiro; tinha ido estudar advocacia na capital, mas, sabe-se la o destino, nunca terminara o curso. Havia denuncias de que o sujeitinho tinha ficado com os recursos do Conselho de Estudantes da escola onde havia tentado obter o canudo, que nunca foi mostrado. Mas isso nunca mais foi comentado ou divulgado em Pedra dos Anjos. Pois bem, Artigas sentou-se e, para variar, ficou ao lado direito do prefeito.

- Meu chefe, acho que devemos pensar em apoiar esse pessoal! - disse com a vênia própria dos puxa sacos.

- Ora, Artigas, só faltava você agora com essa sandice! - disse o velho.

- Não custa nada colocar uma barraca com o seu munguzá e fornecer algumas cumbucas pros músicos e adeptos dos Filhos Bastardos de Alzirinha... - sugeriu Alfredo, como quem pede ao pai para ficar até meia noite na zona.

- Não! Principalmente aqueles vagabundos, que não fazem mais que tocar aquelas musiquinhas de merda! Até tuas filhas, Alfredo, eu soube estão ajudando essa depravação! Logo a Olguinha de Jesus, que eu pensei que poderia se tornar minha nora! - grunhiu o velho.

- Num fale isso, doutor! Olguinha foi até candidata a Miss Pedra dos Anjos! - disse um tanto acanhada dona Guadalupe, segurando um terço que havia sido presente de casamento de Dom Boacasa, o bispo, cuja família mandava na região havia mais de um século.

- Sabiam que o Bocaiuva vai apoiar? - falou Alfredo, como quem não quer nada e querendo tudo.

- O quê?! - falaram ao mesmo tempo os demais, no terraço da casa grande, herança de mais de cinco gerações dos Quero-Quero, os maiores produtores de munguzá da região.

- O Bocaiuva da Canjica? - perguntou dona Guadalupe, com uma surpresa de fazer rosar as bochechas de Hipócritas, o grego.

- Sim. - disse Alfredo e continuou – Chega no dia da festa e vai ajudar com uma substancial quantia de canjiquinha pra todo mundo!

- Hummm... - resmungou o prefeito, coçando as partes de baixo e continuou – Sabia que tinha o dedo do Bocaiuva!

Todo pessoal do teatro tá com eles! - disse dona Guadalupe.

- Esses então...! Gentinha cubana! - disse o coronel, cuspindo em seguida, numa escarradeira ao seus pés, digo, botas.

- Cubanos são os médicos, doutor! - lembrou dona Guadalupe.

- São tudo farinha da mesma garrafa! - esbravejou o alcaide.

Uma pausa foi dada e a expectativa tomou conta de todos naquela reunião...

- Vocês sabem que o meu munguzá existe ha mais de oitenta anos... Tem um nome a zelar! - falou o prefeito dando uma tragada no seu charuto.

- Sim, claro, doutor. Magina colocar seu munguzá numa coisa dessas, tão profana...- falou Artigas.

Alfredo e dona Guadalupe ficaram calados, enquanto o doutor Epaminondas Quero-Quero coçava mais uma vez as partes de baixo.

No dia da festa, a barraca da canjiquinha do Bocaiuva atraiu muita gente e aquele foi mais um ano de sucesso na festinha dos Filhos Bastardos de Alzirinha em Pedra dos Anjos, que encerraram os festejos com um grande viva à picardia.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Da Serra ao Seridó de Leão



Documentário mostra duas regiões do Brasil separadas apenas pelo clima e a distância. A Serra Catarinense e a região do Seridó, no nordeste, possuem mais semelhanças do que diferenças. O regionalismo é forte, e as personagens mostram um país de contrastes. Um filme de Fernando Leão.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Um pouquinho da A Noiva do Porto



(…) Cidade do Porto, Portugal, Outono. Era uma daquelas manhãs majestosas, de se fazer acreditar que o mundo foi criado durante uma delas. Se todo o céu fosse derramado sobre a cidade, tingiria o Porto de um azul anil jamais visto em nenhuma escala de cores de que se tem conhecimento.

Em Vila Nova de Gaia, do outro lado do Douro, a luz da manhã iluminava os casarios das caves das companhias de vinhos, criando um cenário único, digno de uma pintura dos grandes mestres. O céu permaneceu assim, limpo, luminoso, incandescente, por toda aquela manhã. 

A tardinha foi chegando mansamente, preguiçosa. Com ela, chegaram os pássaros, que, aos bandos, se recolhiam em grandes revoadas aos seus aconchegantes ninhos, distribuídos pelos galhos das árvores e por entre as brechas dos telheiros dos casarios centenários, morro acima do cais. Enquanto isso, os Rebelos findavam suas tarefas por aquele dia e se aconchegavam nas paredes do cais da Ribeira.

Então, finalmente, chegou a noite. Soprava uma friezazinha gostosa, daquelas em que sempre nos apetece uma taça ou mais de um tinto, nesse caso tripeiro que, acompanhado ou não, é mais que um dileto conluiado.

As luzes logo iluminaram a Ribeira, ao longo de suas ruas, de suas vielas e de seu cais. O Douro, como um espelho vivo, passou a refletir todas elas em ambas as margens, multiplicando-as por todo o velho bairro, em seus carcomidos casarios com frontarias de granito. Assim também reverberavam de brilhos um lado e o outro da ponte Dom Luís, revelando diversos espectros, em suas ferragens, que não se costuma ver à luz do dia. As luzes seguiam iluminando o Douro até onde ele banha o mar, e iam se diluindo por entre as marolas sequenciadas, que prenunciavam noite de maré alta.

Na Ribeira, havia uma velha pensão de fachada de granito encardido, onde morava todo o tipo de gente: estudantes, trabalhadores de todas as profissões, rufiões travestidos de bons-moços e raparigas de reputações impolutas, ou quase isso. Aquele pardieiro não era o único com esses tão díspares habitantes.
No primeiro andar da deletéria edificação, havia um quarto, entre tantos outros, onde morava a personagem dessa história. (...)

Ta chegando a hora!

Pessoal, esta chegando a hora de se preparar para os festejos de fim de ano e depois cair na folia com o Bloco Anarco-Carnavalesco Filhos de Maria do Cais 2015!


sábado, 29 de novembro de 2014

Martín Fierro


























Aqui está mais uma vez, em meu blog, o grande Jorge Luis Borges. Boa leitura neste final de semana a todos vocês!

Martín Fierro


Jorge Luis Borges

De esta ciudad salieron ejércitos que parecían grandes y que después lo fueron por la magnificación de la gloria. Al cabo de los años,alguno de los soldados volvió y, com un dejo forastero, refirió historias que le habían ocurrido en lugares llamados Ituzaingó o Ayacucho. Estas cosas, ahora, son como si no hubieran sido.

Dos tiranías hubo aquí. Durante la primera, unos hombres, desde el pescante de un carro que salía del mercado del Plata, pregonaron duraznos blancos y amarillos; un chico levantó una punta de la lona que los cubría y vio cabezas unitarias com la barba sangrienta. La segunda fue para muchos cárcel y muerte; para todos un malestar, un sabor de oprobio en los actos de cada día, una humillación incesante. Estas cosas, ahora, son como no hubieran sido.

Un hombre que sabía todas las palabras miró con minucioso amor las plantas y los pájaros de esta tierra y los definió; tal vez para siempre, y escribió con metáforas de metales la vasta crónica de los tumultuosos ponientes y de las formas de la luna. Estas cosas, ahora, son como si no hubieran sido.

También aquí las generaciones han conocido essas vicisitudes comunes y de algún modo eternas que son la materia del arte. Estas cosas, ahora, son como si no hubieran sido, pero en una pieza de hotel, hacia mil ochocientos sesenta y tantos, un hombre soñó una pelea. Un gaucho alza a un moreno con el cuchillo, lo tira como un saco de huesos, lo ve agonizar y morir, se agacha para limpiar el acero, desata su caballo y monta despacio, para que no piensen que huye. Esto que fue una vez vuelve a ser, infinitamente; los visibles ejércitos se fueron y queda un pobre duelo a cuchillo; el sueño de uno es parte de la memoria de todos.